sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Atenção ao Ministério Público



Dito outra vez em algum dos meus pensamentos nos textos passados, repito, quando procuro entender a corrupção eu dou um enorme pulo mental do que é pensá-la como essência ou estado para me questionar o porquê da tal ruptura com os valores.

Analiso a corrupção como dois pratos em uma balança. De um lado, o prato que aparentemente pode ser classificado como os “benefícios”, que traz nele a tentação de ter todo esse dinheiro desviado e, no outro, o prato dos custos em que, pelo menos, deveria estar a probabilidade de punição e o montante da punição. Mas, e se esses dois apresentarem valor irrisório como muitas vezes acontece no nosso país, o que fazer?            

Bom, se tivéssemos as respostas as coisas não estariam do jeito que estão e esse momento de transição, que anseia momentos melhores no país, daria lugar apenas a um maduro objetivo de evoluirmos como sociedade em geral, mas como diz o velho ditado que todos nós já ouvimos pelo menos uma vez: “É melhor prevenir do que remediar”. E é bom ficarmos atentos à importância e ao papel do Ministério Público (MP) nesse combate.

Como uma rápida e simples forma de conceituar esse órgão, vos digo: Por ter a função de promover a realização da Justiça, o bem da sociedade e sair em defesa do estado democrático de direito, o MP, como fiscalizador, se fortificou desde a CF/88 de maneira independente dos outros poderes da República. E, já que o nosso sistema processual adere ao princípio da inércia em que há a necessidade da demanda, ou seja, a jurisdição só age quando provocada, o MP, para defender os interesses da democracia, população e interesses difusos, representará alguém (nós, como sociedade) que não tem como se “defender”.

Acredito, quase como uma crença, que muitas coisas no mundo tiveram, e continuam tendo, a oportunidade de serem evitadas. Um gancho leva o outro e não é só o ser vivo que se reproduz, os costumes e a cultura são passados às novas gerações num sopro tão rápido que só o exemplo diário e o ensinamento desde cedo que a corrupção deteriora o convício social, corrói a dignidade dos cidadãos e compromete a vida das gerações atuais e futuras fará a real diferença.

É evidente a importância de deixar de lado uma forma de esperar inerte. Gosto de pensar que uma esperança qualificada pela adesão de medidas que visam a diminuir o quadro da corrupção vem se fortificando na nossa população. O saldo é positivo quando partimos da teoria à prática para combater esse mal. Aquela história de que é melhor devolver aos índios esse mar de problemas que vem à tona há tantos anos no Brasil é história pra boi dormir.

Lembro-me das 10 medidas contra a corrupção que o MPF apresentou com o objetivo de dificultar o esquema dos corruptos, tanto no quesito da prevenção quanto na punibilidade dos atos. Em Novembro de 2016 esse projeto de lei foi levado à Câmara dos Deputados e das 10 apenas 4 foram aprovadas, e veja bem, ainda com alterações.

A iniciativa dessas medidas, que estavam fora de qualquer vínculo político-partidário, teve o apoio do povo brasileiro e foi assinada por mais de dois milhões de brasileiros na campanha que visava a levar ao Congresso Nacional. Não é pouca gente, né? Através da prevenção e de uma maneira firme para tentar trazer uma punição adequada para fechar as brechas da lei de impunidade vejo o Ministério Público se erguer com projeções futuras, afinal, o momento pede muito, mas talvez esteja na hora do povo credenciar mais confiança e ao mesmo tempo cobrar desse órgão tão importante, que é o MP para o país.

Então, veja bem, aqui vai um conselho: Se você, cidadão que tem conhecimento da existência de qualquer ato de corrupção, está munido de informações suficientes para que o Ministério Público tome uma medida concreta; você  pode fazer a sua denúncia através do http://www.mpf.mp.br/para-o-cidadao/sac. E, caso você queira ler mais sobre as 10 medidas contra a corrupção, pode acompanhar as notícias, tramitação no Congresso, como apoiar futuramente e outras informações no http://www.dezmedidas.mpf.mp.br

terça-feira, 1 de agosto de 2017

A quimera do Brasil sem jeito

Jeito: manobra engenhosa para converter o impossível em possível, o injusto em justo e o ilegal em legal [1]; ou ainda: processo brasileiro genuíno de resolver dificuldades apesar das regras, códigos e leis [2]. Em Brazil's Legal Culture: The Jeito Revisited (1984), Keith S. Rosenn [3] divide a instituição paralegal the jeito (jeitinho, para os íntimos) em cinco tipos de comportamento:
  1. Um membro do governo não cumpre uma obrigação legal por vantagem financeira ou de status.
  2. Um cidadão emprega subterfúgio para contornar uma obrigação legal que é sensível e justa.
  3. Um servidor público cumpre a sua obrigação legal de forma rápida somente em troca de vantagem financeira ou de status.
  4. Um cidadão contorna uma obrigação legal que é irrealista, injusta ou economicamente ineficiente.
  5. Um funcionário público desvia-se de sua obrigação por convicção de que a lei é irrealista, injusta ou economicamente ineficiente.
(Dedilhando o jeito em amplo espectro, tenho a impressão de que nossa tolerância para com os três primeiros tipos de jeito encurtou. Uma ampla revisão das obrigações legais dos brasileiros não eliminaria os dois últimos?)

O jeito como legado luso-romano

Para Rosenn, o jeitinho brasileiro nasce da atitude portuguesa diante da lei, que, por sua vez, foi fundamentalmente influenciada pela lei romana, pelo pluralismo legal e pelo catolicismo. Rosenn acrescenta à genese jeitosa o patrimonialismo, a confusão burocrática e a lentidão administrativa, além de heranças culturais, como: a elevada tolerância com a corrupção, falta de responsabilidade civil, a profunda desigualdade socioeconômicasentimentalismo e a vontade de chegar a um meio-termo.

Influência da lei romana
A legislação romana preocupava-se em construir um sistema harmonioso e universal de normas éticas de conduta. Sua influência sobre a lei portuguesa foi tal que as regras costumeiras foram substituídas por objetivos éticos e padrões de conduta a serem atingidos. O dualismo entre a lei e a vida prática persiste até hoje no Brasil.

Pluralismo legal
A lei romana admitia a personalidade das leis. A lei a ser aplicada sobre uma pessoa dependia mais do grupo a que pertencia do que do território em que habitava. Em Portugal medieval, reis, nobres, militares, membros do clero, professores e estudantes universitários, mercadores e membros de outras corporações eram geralmente isentos da jurisdição ordinária e sujeitos a leis e cortes especiais.

Catolicismo
Historicamente, lei e religião se misturavam na Península Ibérica. Com dogmas rígidos, intolerância moral, formalismo e lentidão em adaptar-se, o Catolicismo estimulou a prática do jeito.

Patrimonialismo
A forma como Portugal administrava o Brasil também contribuiu para o nosso jeitinho. Os administradores estavam ligados ao rei por lealdade pessoal ou lucro e não por dever oficial. Todas as taxas e tributos eram para rendimento pessoal do soberano e não para a nação. Uma posição administrativa na colônia era considerada um privilégio pessoal recebido ou comprado do rei, uma franquia para ganho privado.
Estranho ao patrimonialismo, o conceito torto de serviço público gerou baixa expectativa de que os oficiais do governo agissem de acordo com o interesse público. Assim, ao invés de serviços públicos, os cidadãos do Brasil Colônia buscavam favores pessoais do governo em troca de um agrado. O patrimonialismo também produziu um sistema legal imprevisível e personalista.

Confusão burocrática e lentidão administrativa
         Intermináveis demoras e entraves burocráticos produziram exagerada centralização de poder em Lisboa. A justiça era barganhada como qualquer mercadoria. Judicializar questões era oneroso, consumia tempo e papelada. Além disso, as decisões dos magistrados nunca eram a palavra final, já que, em última instância, cabia recurso aos humores do rei.

Elevada tolerância com a corrupção
Diferente da coroa espanhola, que dispunha de civilizações indígenas autocráticas facilitadoras do controle, Portugal não tinha como controlar as terras de seu imenso império. A coroa portuguesa também não estava disposta a investir na infraestrutura necessária para garantir o cumprimento da lei além-mar. Dando amplos poderes juridicionais aos brasileiros, Portugal enfrentou dificuldade em reafirmar autoridade sobre os latifundiários. Os coronéis "praticavam" a justiça e o descumprimento das leis era institucionalizado.
As políticas mercantilistas e a taxação pesada incentivaram a corrupção. Evasão de impostos e contrabando tornou-se meio de vida, não só no Brasil, mas também em Portugal. Para completar, Portugal punia criminosos com o exílio para o Brasil, que virou uma espécie de campo de despejo de pessoas de pouco respeito às leis. Como sabemos, poucos colonos vieram ao Brasil com intenção de povoamento. A ideia era ceifar riquezas e retornar o quanto antes a Portugal.
Em flagrante tolerância à corrupção, leis e decretos eram frequentemente ajustados a casos individuais. Nem as leis regulando a conduta de magistrados eram observadas. Os magistrados eram proibidos de se casar e fazer negócios com brasileiros. Postos judiciais não podiam ser ocupados por brasileiros, o que frequentemente também era violado.

Falta de responsabilidade cívica
Para Rosenn, vem dos portugueses o fraco senso de lealdade e obrigação para com a sociedade e o forte senso de lealdade e obrigação para com a família e os amigos. Rosenn cita Marcus Cheke: “o português é gentil com cinco categorias de pessoas: sua família, seus amigos, os amigos de sua família, os amigos dos seus amigos e, por último, para com o pedinte no seu caminho. Para com outros concidadãos, ele reconhece pouca obrigação”. Como aplicar a lei a todos com a preferência acima de tudo? O resultado conhecemos: “para os amigos tudo e para os inimigos a lei”.

Profunda desigualdade socioeconômica
A desigualdade judicial acompanha a desigualdade socioeconômica. A despeito da retórica da igualdade, classe social e as conexões pessoais até hoje interferem na aplicação da lei.

Sentimentalismo
O sentimentalismo nacional tende a afrouxar o rigor legal nas múltiplas instâncias do jeito. Entre ajudar alguém de quem se tem pena e respeitar a lei, o brasileiro frequentemente ignora a lei. O “coitado” é alguém com quem criar laços de amizade e, uma vez estabelecidos tais laços, a obrigação pessoal impõe-se sobre a norma legal impessoal e abstrata.

Vontade de chegar a um meio-termo
Temos inegável talento para o compromisso. Rosenn ressalta que a história brasileira é repleta de exemplos de crises superadas por bom-senso e acordo ao invés da aderência estrita à lei ou à doutrina filosófica abstrata.
A prática brasileira de reinterpretar as leis segundo o bom senso tem um ancestral espiritual na Lei da Boa Razão (1769), que encorajava os juízes e advogados a considerar senso comum, costume, legislação comparativa e o espírito da lei como base de decisão. Por bom senso comum entendia-se “de acordo com a lei natural, com os ideais éticos romanos e as práticas de nações cristãs”, uma espécie de precursor legal do jeito.

Em um esforço sobre-humano para deixar o sentimentalismo de lado, repousemos o que nos fizeram na memória. Sigamos, utópicos, rumo à passarela do meio-termo exato entre a malemolência e a rigidez. No horizonte, dúbio de tão tênue, lacrimeja a esperança: tirando o jeito, finda-se a quimera do Brasil sem jeito.


[1] C. Morazé. Le Trois âges du Brésil. (1954)
[2] A. Guerreiro Ramos. Administração e estratégia do desenvolvimento. (1966)
[3] Keith S. Rosenn. Brazil's Legal Culture: The Jeito Revisited. (1984)