quarta-feira, 3 de maio de 2017

Memórias Afetivo-Musicais Volume 2

Matutando (Saudades d)o Brasil: 

Memórias Afetivo-Musicais Volume 2





Foi muito bom ser jovem um dia e musicalmente foi muito bom ser jovem em Fortaleza, Brasil em pleno anos 80. Como ficou estabelecido no primeiro esboço dessas saudades, essas memorias são minha maneira de matutar o Brasil, assim mesmo de longe, tanto no tempo quanto no espaço.

Os anos 80 trouxeram a explosão do rock nacional que na nossa casa chegou um dia com o estranhamento diante do “Você não soube me amar” de uma certa banda chamada Blitz – isso em algum dia de 1982. O que era isso? Não era samba, não era bossa-nova, não era MPB, não era forro ou baião. Era o começo do Rock em brasileiro – só que ainda não sabíamos que não seria apenas um ilha, era sim um continente. Eventualmente esse continente seria explorado revelando geografias complexas como Legião Urbana, Paralamas do Sucesso, e Titãs, algumas formações singulares como Ultraje a Rigor, RPM, Plebe Rude, e Nenhum de Nos, assim como regiões que ficaram entre o singular e o plural, como Kid Abelha, Barão Vermelho, Biquíni Cavadão, IRA! e Engenheiros do Hawaii – sendo essa classificação estritamente pessoal.

Entre a inesperada Blitz de 82 e a confluência do Rock nacional seriam alguns meses de espera em banho-maria, até que em 83 surge um tal de Paralamas do Sucesso com “Cinema Mudo” que incluía “Vidal e Sua Moto”, assim como “Química” – musica escrita por um rapaz de Brasília chamado Renato Russo. No ano seguinte chega Titãs estreando “Sonífera Ilha” – “não posso mais viver assim ao seu ladinho, por isso colo meu ouvido no radinho, de pilha...” seguido por Marvin, “Querem meu sangue”, e “Toda Cor”. Também em 84 o Paralamas lançaria seu segundo álbum que trouxe um desfile de sucessos raramente reunidos num só folego: “Óculos”, “Meu Erro”, “Fui Eu”, “Romance Ideal”, “Ska”, “Mensagem de Amor”, “Me Liga”, e “Assaltaram a gramatica” – e os jovens daquela época sabíamos de cor todas essas letras que fizeram a trilha sonora das nossas primeiras dores de amor.

Essa energia represada em 84 – com o estouro dessas duas bandas que marcariam nossa geração - desaguaria em janeiro de 85 com a primeira edição do Rock in Rio. Aquele evento marcou nossa geração mesmo naqueles que o viram das dunas do Ceara ou ouviram de um primo do primo que teve o privilegio de ir por ter passado no vestibular. Aquele primeiro Rock in Rio faria sim a passagem do bastão da geração Doces Bárbaros e Tropicália para os novos donos do palco da nossa geração. Ali se reuniriam o veteranos Gilberto Gil, Alceu Valença, Morais Moreira, e Elba Ramalho assim como aquela geração que nascia e embalava nossas vidas: os já citados Blitz e Paralamas, assim como a musa – cujo nome ainda não sabíamos – do Kid Abelha e os Aboboras Selvagens, e o Barão Vermelho com Cazuza.



Aquele ano de 1985 traria a estreia do fundamental Legião Urbana com alguns frutos que levariam tempo para amadurecer mas que já espantavam nossos ouvidos adolescentes como “Será” – “será que vamos conseguir vencer?”, “Por enquanto” – “está tudo assim tão diferente/se lembra quando a gente chegou um dia a acreditar/ que tudo era pra sempre/ sem saber, que o pra sempre, sempre acaba/ mas nada vai conseguir mudar, o que ficou/ quando penso em alguém só penso em você/ e ai então estamos bem”, “Geração Coca-Cola” – “somos os filhos da revolução”, “Ainda é cedo”; “uma menina me ensinou/quase tudo que eu sei”, e Soldados – “a gente não queria lutar”. O ano de 1985 seria também o ano do RPM – uma banda, para mim, de apenas um álbum – o genial “RPM ao vivo” que traria no ano seguinte os mesmos sucessos de estúdio reunindo num só sopro: “Revoluções por minuto”, “Alvorada Voraz”, “Olhar 43”, “A Cruz e A Espada”, e a ressureição da balada “London, London”, do Caetano Veloso – quantas aulas em cursinho de inglês não usaram essa musica para decifrar os tais “flying sources in the sky”!

E seria naquele mesmo ano de 1986 que o Legião e o Titãs consolidariam sua posição nos nossos ventrículos, tanto cerebrais como coronários, com o lançamento dos inesquecíveis “Dois” pelo Legião e “Cabeça Dinossauro” pelo Titãs.

É difícil dar a dimensão exata dessas duas obras-primas na cabeça de uma geração que nascera sob a ditadura, crescera com ídolos exilados, e vivia de uma dieta musical censurada. De repente chegava o Renato Russo, que já havia nos desafiado com Geração Coca-Cola, cantando obras primas como “Eduardo e Monica”, “Quase Sem Querer”, “Índios” e a maravilha que é “Tempo Perdido”. Ao mesmo tempo, surgia o Cabeça Dinossauro cantando – ou gritando – coisas que estavam entaladas na garganta de toda nossa geração com “Igreja” – “eu não gosto de padre, eu não gosto de Deus!”, “Policia” “dizem que ela existe para proteger, dizem que ela existe...” Bichos Escrotos “saiam dos lixos!” e “Família” “o choro do neném é estridente, assim não da para ver televisão” Com essa mesmo rapidez percebíamos que essas musicas que nos conquistavam não tocavam da mesma maneira nos ouvidos do nossos pais e ai descobrimos que não éramos, como cantava a Elis nos versos do conterrâneo Belchior, “como nossos pais”.  Éramos agora uma nova geração, uma nova estética, um novo som, uma nova oportunidade de fazer do Brasil o nosso sonho, ou de pelo menos sonhar um novo Brasil, democrático e plural. Um Brasil que se apoderava do Rock-and-roll e fazia bonito, em português.

Esse ano de 1986 foi o ano em que completei 15 anos e como aluno 157 do Colégio Militar de Fortaleza – nosso querido CMF – fazia parte de umas das trupes que dançavam valsas nos aniversários das mocas completando aqueles mesmos quinze anos. Depois da valsa rolava uma legião de titãs que incluía o próprios, assim como RPM, Kid Abelha, e Barão Vermelho – fora alguns sucessos avulsos como o Camisinha de Vênus – “Eu não matei Joana D’arc”, Joao Penca e os Miquinhos Amestrados “Lagrimas de Crocodilo”, Leo Jaime – “Sete Vampiras”, e Metro “Tudo Pode Mudar” e “Beat acelerado”. E o que acalentava nossos primeiros amores era justamente essa parada de sucessos apos a valsa vienense. Por essa época também a festa da padroeira de Jaguaruana, Nossa Senhora de Santana, era comemorada com bandas de fora, inclusive o famoso Grupo Alcano de Recife, que lembro tocando justamente a “Sonífera Ilha”, “Bete Balanço”, e “Pro Dia Nascer Feliz”.


Aqueles dias nasciam felizes. Só nos restava esperar que morressem felizes também. E assim fomos evoluindo com esses bardos, que cresceram conosco, o Legião inclusive traçando esse crescimento até mesmo com o fabuloso “Quatro Estacoes” que ensinou Camões a tantos da nossa geração – “o Amor é fogo que arde sem se ver/ É ferida que dói e não se sente”. Antes dos Quatro Estacoes, em 89, já haviam também desafiado nossa capacidade de memorização em 87 com o lançamento do LP contendo, além de “Angra dos Reis” e “Que Pais é esse”, a historia de Joao de Santos Cristo – nos 10 minutos de Faroeste Caboclo – que sabíamos sim, de cor. Assim o Legião foi traçando a nossa historia na sua ou a sua historia na nossa. Esse traço chegou ao fim com o álbum “A Tempestade” – o triste adeus com “Natalia” “Longe ao meu lado” “Via Láctea” “Aloha” “Esperando por Mim” “Quando Você Voltar” e o “Livro Dos Dias”. Essa marcação feita pelo Legião da nossas vidas chegaria ao ápice trágico naquela noite de 11 de outubro de 1996, quando o Jornal Nacional anunciava a morte de Renato Russo, e com ele um pedaço tristemente feliz e alegremente triste da nossas vidas. Já não éramos mais tão jovens.