No último artigo que tive o prazer de compartilhar no blog, abordei uma temática relativa à mudanças microssociais ocorrendo na sociedade brasileira, empiricamente testemunhadas no meu entorno, que, apesar de ainda constituÃrem movimentos minoritários, encontrando-se, diriam alguns, em estágio embrionário (as famosas sementes), deviam ser apreendidas com otimismo. Haveria, no meu ver, demonstração de capacidade cidadã em criar, adaptar-se e até mesmo transformar velhos padrões ainda dominantes usando referenciais que valorizem atitudes como solidariedade, inclusão e integração em uma expressão mais visÃvel e concreta de amor ao próximo.
Um amigo, ao ler o
artigo, comentou sobre a necessidade de empoderamento dos Brasileiros para que
tal transição ocorra. O comentário me interpelou e me instigou a primeiramente entender
melhor o significado deste neologismo recém difundido. Segundo, interessou-me a
aplicabilidade daquele conceito na sociedade Brasileira em busca de
transformação mais efetiva e sustentável, mesmo que ainda bastante inconsciente.
A palavra
“empoderamento” é descrita em dicionários da lÃngua portuguesa como Aurélio e
Houaiss. De acordo com eles, o termo conceitua o ato ou efeito de promover
conscientização e tomada de poder de influência de uma pessoa ou grupo social,
geralmente para realizar mudanças de ordem social, polÃtica, econômica e
cultural no contexto que lhe afeta.
A ideia seria portanto dar a alguém ou a um grupo o poder de decisão em vez de tutelá-lo.
O termo “empoderamento” retro definido provém da tradução literal do termo inglês “empowerment”, surgido nos Estados Unidos há uns 30 a 40 anos em contexto acadêmico. Reza a lenda, aceita pela maioria, que o pesquisador em psicologia social, Julian Rapapport, teria cunhado o termo “empowerment” com a intenção de descrever um fenômeno observado e a ser encorajado nas esferas individual e comunitária.
De fato, o neologismo, em sua origem, tenta descrever processos que dizem respeito à individualidade, o “empoderamento pessoal”, uma abordagem oferecida em psicologia que deve permitir a emancipação do indivÃduo, ganhando autonomia e liberdade. Profissionais de coaching têm usado com frequência aquele conceito como motor para suas atividades de desenvolvimento pessoal.
Consequência natural desse empoderamento pessoal, surge uma capacidade individual em identificar-se a determinados grupos, gerar sentimentos intra-grupo de respeito recÃproco, ao sentir-se pertencente plenamente a uma comunidade, defendendo suas necessidades perante o restante da sociedade. Os movimentos feministas é que melhor representam essa dimensão comunitária do empoderamento. Apesar do feminimo ser o movimento mais comumente associado ao vocábulo “empoderamento” em sua dimensão grupal, este designa a batalha por reconhecimento e inclusão de toda comunidade que, de alguma forma, pode ser considerada minoritária e/ou vÃtima de diversas injustiças. O interessante é notar que a prática contÃnua deste sentimento de respeito e defesa de causa tende a desencadear no indivÃduo uma capacidade de expressão de solidariedade que transpassa sua própria comunidade, identificando-se de alguma maneira com as dificuldades enfrentadas por outros grupos vulneráveis. Minha colocação sobre iniciativas testemunhadas inserem-se nesse nÃvel de entendimento do fenômeno solidário em processo gradual de empoderamento.
Mas, poderão tais fenômenos provocar mudanças significativas nas estruturas da sociedade na qual se inserem? Ou seja, poderia existir um terceiro nÃvel de “empoderamento” que poderÃamos chamar de societal? A pergunta liga portanto o empoderamento à uma prática cidadã esclarecida e responsável.
Pois bem, para minha surpresa, existe uma visão brasileira tradicional sobre o assunto, sugerida pelo educador Paulo Freire. Para ele, o “empowerment”, em sua versão original, enfatizaria a problemática da liberdade individual, pilar fundador da sociedade norte americana. Apesar de reconhecer que tal prática seja um passo necessário à uma prática cidadã mais responsável, ela, em si, não seria suficiente para que o salto entre o nÃvel comunitário e societal ocorra. Para tanto, Paulo Freire reforça a necessidade de conscientização, um processo mais amplo do que o empoderamento. Ou, melhor dizendo, o empoderamento como ferramenta necessária, passo obrigatório rumo à uma conscientização que permita gerar mudança saudável de entendimentos e comportamentos, não somente no contexto individual ou do grupo, mas também à nÃvel societal.
Como encorajar então esse movimento de conscientização coletiva? Até onde pude perceber nas poucas leituras que eu realizei sobre o assunto, as áreas da saúde, entre elas medicina comunitária e saúde coletiva parecem ser vanguardistas no assunto incentivando a implementação de ações diversas, transdisciplinares e transdimensionais, que auxiliem nesse tal salto de conscientização. Não por acaso, o amigo que citei no inÃcio do artigo atua em pesquisas na área de saúde coletiva.
A meta é alvejar tanto o nÃvel individual do empoderamento, ou seja, reconhecer a necessidade de transformar-se, integrar novos hábitos em todas as áreas de sua vida que sirvam de “seguros” por assim dizer à sua saúde fÃsica, emocional e mental, como o nÃvel do empoderamento comunitário em ações conjuntas destes indivÃduos, enfrentando perigos e desafios similares para que, juntos, achem soluções viáveis e sustentáveis, perante por exemplo, problemas ligados à sujeira nos ambientes, cuidados com a água, elaborando e implantando ações reparadoras e educativas. Assim, há, claramente, a necessidade de implantação de polÃticas públicas que permitam que esses indivÃduos e coletividades consigam reconhecer e assumir suas responsabilidades. Cuidado, a meta não é que a polÃtica pública se substitua ao esforço local. Ao contrário, trata-se, nas polÃticas públicas sugeridas, de dar apoio ao processo de responsabilização e conscientização, delegando poderes a estes, em vez de tutelá-los: um voto de confiança em suas capacidades criativas na busca de soluções que façam sentido e gerem, portanto, verdadeira diferença no contexto especÃfico destes indivÃduos e comunidades ou grupos.
Baseado nesses exemplos da área de saúde e seguindo o raciocÃnio proposto na prática cidadã em polÃtica, haveria, no meu entender uma necessidade de revisão profunda das práticas polÃticas tradicionalmente diretivas. Estas deveriam privilegiar uma postura que foque o suporte à s iniciativas isoladas, fomentando meios para que estas possam florescer e sustentar-se, respeitando suas especificidades. Ou seja, trata-se de estabelecer polÃticas que deem mais poder e autonomia à s ações locais, micro ações, que deem mais visibilidade e acesso ao cidadão para expressar suas necessidades e expectativas, seja em nome de um grupo ou representando uma demanda difundida na sociedade como um todo.
Aquilo me lembra a prática da democracia participativa, um movimento identificável em vários paÃses e frequentemente viabilizada com uso da ferramenta internet, incluindo, por exemplo, iniciativas para propor projetos em plataformas especiais oferecidas por Governos e, que, a partir de um determinado número de votos recebidos, passam a ser pauta obrigatória para o poder legislativo. As iniciativas de transparência de contas, convite à organizações não governamentais e representantes de coletividades em decisões especÃficas integram um conjunto de ações que configuram uma nova maneira de se fazer polÃtica, de ser cidadão. De novo, estas tendências estão surgindo agora. Sua consolidação depende de mudança nas mentalidades a respeito da polÃtica, sujeita a crÃtica e rejeição, após anos de práticas tendendo à imposição e uniformização.
O empoderamento como caminho para conscientização e consequente mudança societal é possÃvel, sim. Para concluir, permito-me reproduzir abaixo as palavras de Paulo Freire quando indagado sobre a possibilidade efetiva de mudanças na sociedade:
Se é possÃvel obter água
cavando o chão,
se é possÃvel enfeitar a casa,
se é possÃvel crer desta ou
daquela forma,
se é possÃvel nos defender do
frio ou do calor,
se é possÃvel desviar leitos de
rios, fazer barragens,
se é possÃvel mudar o mundo que
não fizemos, o da natureza,
por que não
mudar o mundo que fazemos, o da cultura, o da história, o da polÃtica?
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