domingo, 2 de abril de 2017

Empoderamento e cidadania, uma visão brasileira




No último artigo que tive o prazer de compartilhar no blog, abordei uma temática relativa à mudanças microssociais ocorrendo na sociedade brasileira, empiricamente testemunhadas no meu entorno, que, apesar de ainda constituírem movimentos minoritários, encontrando-se, diriam alguns, em estágio embrionário (as famosas sementes), deviam ser apreendidas com otimismo. Haveria, no meu ver, demonstração de capacidade cidadã em criar, adaptar-se e até mesmo transformar velhos padrões ainda dominantes usando referenciais que valorizem atitudes como solidariedade, inclusão e integração em uma expressão mais visível e concreta de amor ao próximo.

Um amigo, ao ler o artigo, comentou sobre a necessidade de empoderamento dos Brasileiros para que tal transição ocorra. O comentário me interpelou e me instigou a primeiramente entender melhor o significado deste neologismo recém difundido. Segundo, interessou-me a aplicabilidade daquele conceito na sociedade Brasileira em busca de transformação mais efetiva e sustentável, mesmo que ainda bastante inconsciente.

A palavra “empoderamento” é descrita em dicionários da língua portuguesa como Aurélio e Houaiss. De acordo com eles, o termo conceitua o ato ou efeito de promover conscientização e tomada de poder de influência de uma pessoa ou grupo social, geralmente para realizar mudanças de ordem social, política, econômica e cultural no contexto que lhe afeta.

A ideia seria portanto dar a alguém ou a um grupo o poder de decisão em vez de tutelá-lo.

O termo “empoderamento” retro definido provém da tradução literal do termo inglês “empowerment”, surgido nos Estados Unidos há uns 30 a 40 anos em contexto acadêmico. Reza a lenda, aceita pela maioria, que o pesquisador em psicologia social, Julian Rapapport, teria cunhado o termo “empowerment” com a intenção de descrever um fenômeno observado e a ser encorajado nas esferas individual e comunitária.

De fato, o neologismo, em sua origem, tenta descrever processos que dizem respeito à individualidade, o “empoderamento pessoal”, uma abordagem oferecida em psicologia que deve permitir a emancipação do indivíduo, ganhando autonomia e liberdade. Profissionais de coaching têm usado com frequência aquele conceito como motor para suas atividades de desenvolvimento pessoal.

Consequência natural desse empoderamento pessoal, surge uma capacidade individual em identificar-se a determinados grupos, gerar sentimentos intra-grupo de respeito recíproco, ao sentir-se pertencente plenamente a uma comunidade, defendendo suas necessidades perante o restante da sociedade. Os movimentos feministas é que melhor representam essa dimensão comunitária do empoderamento. Apesar do feminimo ser o movimento mais comumente associado ao vocábulo “empoderamento” em sua dimensão grupal, este designa a batalha por reconhecimento e inclusão de toda comunidade que, de alguma forma, pode ser considerada minoritária e/ou vítima de diversas injustiças. O interessante é notar que a prática contínua deste sentimento de respeito e defesa de causa tende a desencadear no indivíduo uma capacidade de expressão de solidariedade que transpassa sua própria comunidade, identificando-se de alguma maneira com as dificuldades enfrentadas por outros grupos vulneráveis. Minha colocação sobre iniciativas testemunhadas inserem-se nesse nível de entendimento do fenômeno solidário em processo gradual de empoderamento.

Mas, poderão tais fenômenos provocar mudanças significativas nas estruturas da sociedade na qual se inserem? Ou seja, poderia existir um terceiro nível de “empoderamento” que poderíamos chamar de societal? A pergunta liga portanto o empoderamento à uma prática cidadã esclarecida e responsável.

Pois bem, para minha surpresa, existe uma visão brasileira tradicional sobre o assunto, sugerida pelo educador Paulo Freire. Para ele, o “empowerment”, em sua versão original, enfatizaria a problemática da liberdade individual, pilar fundador da sociedade norte americana. Apesar de reconhecer que tal prática seja um passo necessário à uma prática cidadã mais responsável, ela, em si, não seria suficiente para que o salto entre o nível comunitário e societal ocorra. Para tanto, Paulo Freire reforça a necessidade de conscientização, um processo mais amplo do que o empoderamento. Ou, melhor dizendo, o empoderamento como ferramenta necessária, passo obrigatório rumo à uma conscientização que permita gerar mudança saudável de entendimentos e comportamentos, não somente no contexto individual ou do grupo, mas também à nível societal.

Como encorajar então esse movimento de conscientização coletiva? Até onde pude perceber nas poucas leituras que eu realizei sobre o assunto, as áreas da saúde, entre elas medicina comunitária e saúde coletiva parecem ser vanguardistas no assunto incentivando a implementação de ações diversas, transdisciplinares e transdimensionais, que auxiliem nesse tal salto de conscientização. Não por acaso, o amigo que citei no início do artigo atua em pesquisas na área de saúde coletiva.

A meta é alvejar tanto o nível individual do empoderamento, ou seja, reconhecer a necessidade de transformar-se, integrar novos hábitos em todas as áreas de sua vida que sirvam de “seguros” por assim dizer à sua saúde física, emocional e mental, como o nível do empoderamento comunitário em ações conjuntas destes indivíduos, enfrentando perigos e desafios similares para que, juntos, achem soluções viáveis e sustentáveis, perante por exemplo, problemas ligados à sujeira nos ambientes, cuidados com a água, elaborando e implantando ações reparadoras e educativas. Assim, há, claramente, a necessidade de implantação de políticas públicas que permitam que esses indivíduos e coletividades consigam reconhecer e assumir suas responsabilidades. Cuidado, a meta não é que a política pública se substitua ao esforço local. Ao contrário, trata-se, nas políticas públicas sugeridas, de dar apoio ao processo de responsabilização e conscientização, delegando poderes a estes, em vez de tutelá-los: um voto de confiança em suas capacidades criativas na busca de soluções que façam sentido e gerem, portanto, verdadeira diferença no contexto específico destes indivíduos e comunidades ou grupos.

Baseado nesses exemplos da área de saúde e seguindo o raciocínio proposto na prática cidadã em política, haveria, no meu entender uma necessidade de revisão profunda das práticas políticas tradicionalmente diretivas. Estas deveriam privilegiar uma postura que foque o suporte às iniciativas isoladas, fomentando meios para que estas possam florescer e sustentar-se, respeitando suas especificidades. Ou seja, trata-se de estabelecer políticas que deem mais poder e autonomia às ações locais, micro ações, que deem mais visibilidade e acesso ao cidadão para expressar suas necessidades e expectativas, seja em nome de um grupo ou representando uma demanda difundida na sociedade como um todo.

Aquilo me lembra a prática da democracia participativa, um movimento identificável em vários países e frequentemente viabilizada com uso da ferramenta internet, incluindo, por exemplo, iniciativas para propor projetos em plataformas especiais oferecidas por Governos e, que, a partir de um determinado número de votos recebidos, passam a ser pauta obrigatória para o poder legislativo. As iniciativas de transparência de contas, convite à organizações não governamentais e representantes de coletividades em decisões específicas integram um conjunto de ações que configuram uma nova maneira de se fazer política, de ser cidadão. De novo, estas tendências estão surgindo agora. Sua consolidação depende de mudança nas mentalidades a respeito da política, sujeita a crítica e rejeição, após anos de práticas tendendo à imposição e uniformização. 

O empoderamento como caminho para conscientização e consequente mudança societal é possível, sim. Para concluir, permito-me reproduzir abaixo as palavras de Paulo Freire quando indagado sobre a possibilidade efetiva de mudanças na sociedade:

Se é possível obter água cavando o chão,
se é possível enfeitar a casa,
se é possível crer desta ou daquela forma,
se é possível nos defender do frio ou do calor,
se é possível desviar leitos de rios, fazer barragens,
se é possível mudar o mundo que não fizemos, o da natureza,
por que não mudar o mundo que fazemos, o da cultura, o da história, o da política?

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