sábado, 22 de abril de 2017

Marisqueiros Urbanos: Ensaio de Estética e Sobrevivência


Vou contar aqui um pouco da história de um personagem que também faz parte da sua história: o seu nome é Tomé.

Tomé não sabe ler nem escrever. A principal atividade que exerce é de “flanelinha” nas sinaleiras das vias urbanas. Contudo, o dinheiro que consegue ganhar com esta atividade é muito incerto. Algumas vezes chega a dez reais por dia, outras, o ganho é quase nada. Tomé afirma que é muito difícil trabalhar na rua hoje em função da enorme concorrência. Em todos os lugares que carros ficam parados, já existe alguém se anunciando como dono do ponto. O lugar que trabalha pertence a outro rapaz mais antigo na área. Contudo, o mesmo só aparece para trabalhar por volta das 16 horas. Tomé aproveita esta lacuna para fazer o seu horário. Trabalha entre 10 e 16 horas. Para sobreviver com estas oscilações do seu “faturamento”, abriu uma rede de outras opções. Se oferece como ajudante de pedreiro em alguma obra; é catador de lata de cerveja e refrigerante; limpa fossa; tem um mapeamento de vários restaurantes e instituições onde consegue obter alimento de graça ou mediante a troca de pequenos serviços, como lavar um quintal ou sanitário. Sabe também um conjunto de endereços de algumas famílias que se dedicam a prestar algum tipo de ajuda aos desfavorecidos. Um ponto que possibilita este trânsito pôr ambientes diversos é a imagem de “bom rapaz” que soube produzir de maneira muito hábil. Cuida do seu aspecto visual: está sempre limpo e com roupas lavadas. Conseguiu produzir um ar de credibilidade, que sabe veicular com maestria no seu jeito de vestir, olhar e falar.

Tomé transita por diferentes espaços. Os seus pertences ficam guardados em diferentes lugares, mudando em função de fatores conjunturais. Atualmente encontram-se guardados em uma árvore. Dorme também em diferentes lugares. Frequentemente na rua, quando costuma se dirigir para as marginais da Avenida Contorno, próximo à praia. Costuma dormir também em albergues públicos, na garagem de alguma casa de família ou, quando está com dinheiro “sobrando”, dorme em algum hotel barato.

O objetivo deste texto não é camuflar os efeitos catastróficos de uma política econômica perversa sobre uma grande parcela da nossa população, mas possibilitar uma reflexão sobre o sentido do processo de exclusão social daí decorrente. O contexto histórico e social do Brasil possibilitou a afirmação de um ambiente muito específico de relações de trabalho e de sobrevivência:  a rua. Enquanto espaço de desdobramentos de atividades econômicas, a rua é anterior à existência de qualquer espaço institucional outro.  Contudo, com o desenvolvimento do mundo industrial e a efetivação das relações de trabalho assalariado, as atividades desenvolvidas na rua passaram a ser vistas com desconfiança e restrições. A rua, como lugar próprio do livre comércio, tornou-se paraíso de toda gama de mercadorias e de serviços baratos e de qualidade duvidosa.  Dentro deste espaço, temos os contornos que definem a última fronteira entre estar dentro ou fora do sistema. Nos limites desta linha tênue é que se encontram os marisqueiros urbanos.

A palavra marisqueiro reporta ao mariscador, habitante beira mar, notabilizado pelo faro que desenvolveu para localizar seus mariscos. Os nossos marisqueiros são pessoas de origem indefinida, que não fazem parte de algum grupo social em especial. Podem vir de qualquer território. O que os define são as atividades que desenvolvem, caracterizadas, fundamentalmente, pela dependência de um tipo especial de faro para identificar boas oportunidades. Atuam nas franjas de algum espaço institucional ou na própria rua. Basta que seja possível lançar uma oferta e lá estão eles: seja para carregar algum objeto, “olhar” o carro, limpá-lo, tomar conta de qualquer coisa, empacotar algo, limpar, encher o garrafão de água, lavar, enterrar um bicho morto ou mesmo simplesmente mariscar uma esmola. Basta que exista uma possibilidade de anunciar um pedido ou algo a ser feito e alguém que se disponha a pagar por isto, que eles entrarão em cena. Ser marisqueiro define uma atitude diante dos fluxos e refluxos do mundo urbano. Esta atitude relaciona-se com a capacidade de se articular com estes ritmos da cidade e ser capaz de compor pequenos arranjos, que lhe possibilite extrair o que precisa para sobreviver.

Este lugar que os marisqueiros urbanos ocupam assinala também o lugar próprio onde se abrem as portas da marginalidade.  Estamos em uma zona de desenvolvimento de negatividades. Quem a ocupa candidata-se a virar criminoso. São verdadeiros canais de escoamento do “lixo humano”.  É a zona de descarga, habitadas pelos “desacreditados”, aqueles cujo o próximo passo só pode ser mesmo o envolvimento com o mundo do crime. Fica patente que a instituição desta zona de fronteira possui um papel decisivo na constituição de um espaço subjetivo, onde identidades são criadas. São zonas de construção de sentido.

O personagem Tomé mostra que é possível se apropriar deste espaço sem se deixar conduzir pela sua negatividade. Tomé é um especialista em estratégias de sobrevivência urbana. Sua vida exige uma constante capacidade de improvisar, de se articular, de abrir novas redes e criar novas saídas para antigos problemas. Um mariscador, que no toque firme do seu olhar preciso consegue ver lá onde se esconde o que procura. Um personagem, contudo, marcado por uma maldição social. Existe um texto pronto para contar a história de como sucumbiu ao mundo do crime. A sociedade o convida, a cada momento, para que ele ocupe este lugar, fazendo cumprir este destino perverso. Mas ele subverte a ordem e heroicamente resiste.

Ao criar zonas de descarga, quando o sujeito descartado é tido como um virtual candidato à criminoso, a sociedade mina as possibilidades destes espaços limítrofes possibilitarem o desenvolvimento de outras potencialidades. Estas regiões fronteiriças, lá onde se desdobram formas diferentes de vivenciar as relações de trabalho, constituem zonas de possibilidades que extrapolam em muito a mão única da criminalidade. São verdadeiros laboratórios sociais, onde pode emergir formas alternativas de estar no mundo. Portanto, importante desviar o olhar estigmatizante e considerar que os “flanelinhas” ou os “guardadores” de carro que aparecem nas ruas e nas calçadas, podem ser honestos trabalhadores. São vítimas do modelo econômico vigente, mas estão lutando para driblar as áridas condições de sobrevivência que lhe são impostas. São marisqueiros urbanos, especialistas em arte e sobrevivência.

quarta-feira, 12 de abril de 2017

​Liberação da venda de drogas: precisamos falar sobre isso!



No Brasil, morrem por ano 35.000 pessoas por ingerirem álcool. Sabe quantos morrem por usar cocaína? Trezentos! Sim, morrem 100 vezes mais pessoas por álcool do que por cocaína. Por coisas assim, tem crescido o número de defensores da venda legalizada de drogas.

Ser radical - seja de direita, seja de esquerda - pressupõe ignorar os fatos para defender uma ideia por paixão ou convicção. Defender a descriminalização das drogas é uma bandeira impopular e, costumeiramente, associada à extrema direita e à extrema esquerda. A extrema direita defende o direito individual das pessoas por suas próprias vidas, incluindo o direito a fazer mal a si próprio. A extrema esquerda defende o direito ao uso de substâncias por outros motivos, mas também o faz. É óbvio que drogas fazem mal. É óbvio que algumas fazem mais mal do que outras. Argumentos lógicos para defender algo como permitir que alguém use uma substância que poderá matá-la, no entanto, existem!

Talvez o principal motivo para se pensar em permitir a venda e consumo recreativo de susbtâncias psicotrópicas seja cultural: as pessoas no mundo inteiro buscam drogas para usar, e o fazem desde que o ser humano é ser humano. Essa falha autodestrutiva de caráter faz com que a demanda por drogas seja permanente, e a economia ensina: se há demanda, haverá oferta. Ponto. Não há discussão. São fatos. Há demanda? Se sim, haverá oferta!

Não seria arrogância do Brasil querer ter êxito em proibir a produção, venda e consumo de drogas aqui, no quinto país mais extenso do mundo, com maior dimensão de terras cultiváveis e com uma das maiores fronteiras com outros países do mundo, se em países como Suíça e Dinamarca, que, além de pequenos, são ricos e desenvolvidos, existe circulação de drogas ilícitas? Quanto custa essa guerra invencível do governo contra as drogas? Não seria melhor gastar essa fortuna com saúde e com educação? Qual a consequência de proibir, do ponto de vista comercial? Não seria uma forma de garantir o monopólio da venda para pessoas sem escrúpulos como Fernandinho Beira-Mar, que, após ser preso, foi substituído imediatamente por um dos traficantes de uma fila interminável de pessoas dispostas a tomar seu lugar? Dos presos no país, metade o são por questões de venda de drogas. Recente episódio na Indonésia chamou à atenção no Brasil: um brasileiro foi condenado à morte por estar vendendo drogas naquele país. O rigor da Indonésia contra a venda de drogas surte efeito? A resposta: está havendo aumento de consumo de drogas por lá! (http://ultimosegundo.ig.com.br/mundo/2015-01-21/mesmo-com-pena-de-morte-uso-de-drogas-na-indonesia-deve-crescer-45-em-2015.html)

No mundo, há opiniões e há fatos. São os estudos que os diferenciam. Dois grandes estudos sociológicos ocorreram no mundo de modo involuntário: 1- a separação da Alemanha em duas provou que socialismo é pior que capitalismo. 2- a proibição do álcool nos EUA no início do século XX provou que proibir um produto que possui grande demanda é uma medida inútil e prejudicial.

Não é falha de caráter defender a venda de drogas. Mesmo que muitos que o fazem sejam pessoas com ideias equivocadas sobre outros assuntos, a tese, em si, é perfeitamente lógica. Para embasar a opinião a respeito dos efeitos da proibição x regulamentação das doras, alguns tópicos são essenciais:

  1. Qual a mortalidade geral causada pelas drogas (em %)? Isso traz uma ideia de qual a chance de um usuário de uma droga x morrer por uso dessa mesma droga.
  2. A liberação de drogas (ou alguma delas) nos locais onde isso ocorreu gerou aumento, diminuição ou estagnação no número de usuários?
  3. Qual o custo da guerra às drogas em países sérios? Em algum país esta guerra está sendo vencida?
  4. Qual o mal pior: as drogas ou o tráfico de drogas? Quem mata mais: a cocaína, maconha, etc juntos ou as disputas decorrentes de suas vendas?

Número de mortes anuais por substâncias tóxicas:
Álcool: 34.573 / Cigarro: 4.625 / Substâncias psicoativas: 480 / Cocaina: 354 
Fonte: http://www.clicrbs.com.br/pdf/12985756.pdf

Um estudo científico sobre os riscos à saúde associado ao uso de drogas, incluindo o álcool e o tabaco, indicou que,  muitas drogas proibidas talvez sejam menos nocivas do que as drogas permitidas. Então por que proibir algumas e não outras? E, proibindo algumas apenas, qual o critério para a escolha de qual droga proibir? O álcool e o tabaco parecem ser mais nocivos do que a maconha, por exemplo. (https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4311234/). 

O Brasil é o segundo maior consumidor mundial de cocaína, com quase 6.000.000 de brasileiros já tendo experimentado essa droga (https://noticias.terra.com.br/brasil/estudo-aponta-brasil-como-segundo-maior-consumidor-de-cocaina-no-mundo,48b1dc840f0da310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html). Por ano, quantas pessoas morrem por ter usado cocaína? Dos milhões de usuários, morrem cerca de 350 por ano. Não são 350.000, mas 350 apenas. Além de representar um número de mortes modesto em relação ao total de mortes no Brasil, parte da causa dessas mortes se dá, muitas vezes, por a cocaína conter as mais diversas substâncias misturadas para aumentar o lucro dos vendedores. Isso ocorre até em locais mais desenvolvidos, como a Europa (https://www.publico.pt/destaque/jornal/mortalidade-associada-ao-consumo-de-cocaina-esta-a-aumentar-na-europa-20597087).

O número de mortes pelo uso de drogas no Brasil é pequeno. São números. Números são impessoais e não tem partido. Por outro lado, o número de homicídios no Brasil é assustador. A nível de comparação, enquanto no Brasil inteiro morrem em um ano 350 pessoas por usarem cocaína, naqueles poucos dias sem polícia no Espírito Santo, morreram mais de 150 pessoas apenas nequela estado. No Brasil inteiro, em 2014, foram 60.000 homicídios. (http://www.valor.com.br/brasil/4493134/brasil-lidera-em-numero-de-homicidios-no-mundo-diz-atlas-da-violencia). Maior número entre todos os países do mundo. Cerca de um terço desses homicídios ocorreu devido à briga entre vendedores de drogas (http://www.gazetadopovo.com.br/especiais/paz-tem-voz/droga-causa-77-dos-homicidios-9dgb4ldc3wfdvvkce6rztqtzi), ou seja, a venda ilegal de drogas matou cerca de 40.000 pessoas em um ano no Brasil.

Números de mortes por homicídios e por venda de drogas no Brasil:
Homicidios em 2014: 60.000 
Homicídios por tráfico num ano: 40.000 
Fontes: 
1- http://www.valor.com.br/brasil/4493134/brasil-lidera-em-numero-de-homicidios-no-mundo-diz-atlas-da-violencia 
2- http://www.gazetadopovo.com.br/especiais/paz-tem-voz/droga-causa-77-dos-homicidios-9dgb4ldc3wfdvvkce6rztqtzi

Para quem não entendeu: 1.000 pessoas no Brasil morrem por ano por usarem drogas, enquanto 40.000 pessoas morrem pela venda de drogas. A política de guerra às drogas objetiva evitar as 1.000 mortes de quem as consome, mas é inútil, ou talvez intensifique, as 40.000 mortes causadas por sua venda. Se maconha fosse vendida da mesma forma que os cigarros, haveria morte por tráfico de maconha? Isso é fácil de responder: morrem no Brasil 35.000 pessoas todo ano por serem usuárias de álcool. Quantas pessoas morrem por não terem pagado por sua cachaça? Será que o dono do Pão de Açúcar e o dono do Carrefour matam alguém para terem o monopólio de venda de cerveja no morro? Em resumo, pelo fato de a venda de álcool ser permitida, morrem pessoas por usar álcool, mas não morrem pessoas por venderem álcool. O que aconteceria se fosse permitido vender drogas?

Mortes anuais por consumo de drogas no Brasil: menos de 1.000
Mortes anuais por venda ilegal de drogas no Brasil: cerca de 40.000

Qual seria sua prioridade? Toda morte evitável merece atenção do Estado, mas, sendo você o gestor, você investiria mais em medidas para evitar quais tipos de morte, as mortes por drogas, ou a morte por venda ilegal de drogas? Ou seja, você investiria mais dinheiro para evitar 1.000 mortes ou para evitar 40.000 mortes anuais? O mundo inteiro tem investido mais na primeira opção. Alguém explique o porquê...

domingo, 2 de abril de 2017

Empoderamento e cidadania, uma visão brasileira




No último artigo que tive o prazer de compartilhar no blog, abordei uma temática relativa à mudanças microssociais ocorrendo na sociedade brasileira, empiricamente testemunhadas no meu entorno, que, apesar de ainda constituírem movimentos minoritários, encontrando-se, diriam alguns, em estágio embrionário (as famosas sementes), deviam ser apreendidas com otimismo. Haveria, no meu ver, demonstração de capacidade cidadã em criar, adaptar-se e até mesmo transformar velhos padrões ainda dominantes usando referenciais que valorizem atitudes como solidariedade, inclusão e integração em uma expressão mais visível e concreta de amor ao próximo.

Um amigo, ao ler o artigo, comentou sobre a necessidade de empoderamento dos Brasileiros para que tal transição ocorra. O comentário me interpelou e me instigou a primeiramente entender melhor o significado deste neologismo recém difundido. Segundo, interessou-me a aplicabilidade daquele conceito na sociedade Brasileira em busca de transformação mais efetiva e sustentável, mesmo que ainda bastante inconsciente.

A palavra “empoderamento” é descrita em dicionários da língua portuguesa como Aurélio e Houaiss. De acordo com eles, o termo conceitua o ato ou efeito de promover conscientização e tomada de poder de influência de uma pessoa ou grupo social, geralmente para realizar mudanças de ordem social, política, econômica e cultural no contexto que lhe afeta.

A ideia seria portanto dar a alguém ou a um grupo o poder de decisão em vez de tutelá-lo.

O termo “empoderamento” retro definido provém da tradução literal do termo inglês “empowerment”, surgido nos Estados Unidos há uns 30 a 40 anos em contexto acadêmico. Reza a lenda, aceita pela maioria, que o pesquisador em psicologia social, Julian Rapapport, teria cunhado o termo “empowerment” com a intenção de descrever um fenômeno observado e a ser encorajado nas esferas individual e comunitária.

De fato, o neologismo, em sua origem, tenta descrever processos que dizem respeito à individualidade, o “empoderamento pessoal”, uma abordagem oferecida em psicologia que deve permitir a emancipação do indivíduo, ganhando autonomia e liberdade. Profissionais de coaching têm usado com frequência aquele conceito como motor para suas atividades de desenvolvimento pessoal.

Consequência natural desse empoderamento pessoal, surge uma capacidade individual em identificar-se a determinados grupos, gerar sentimentos intra-grupo de respeito recíproco, ao sentir-se pertencente plenamente a uma comunidade, defendendo suas necessidades perante o restante da sociedade. Os movimentos feministas é que melhor representam essa dimensão comunitária do empoderamento. Apesar do feminimo ser o movimento mais comumente associado ao vocábulo “empoderamento” em sua dimensão grupal, este designa a batalha por reconhecimento e inclusão de toda comunidade que, de alguma forma, pode ser considerada minoritária e/ou vítima de diversas injustiças. O interessante é notar que a prática contínua deste sentimento de respeito e defesa de causa tende a desencadear no indivíduo uma capacidade de expressão de solidariedade que transpassa sua própria comunidade, identificando-se de alguma maneira com as dificuldades enfrentadas por outros grupos vulneráveis. Minha colocação sobre iniciativas testemunhadas inserem-se nesse nível de entendimento do fenômeno solidário em processo gradual de empoderamento.

Mas, poderão tais fenômenos provocar mudanças significativas nas estruturas da sociedade na qual se inserem? Ou seja, poderia existir um terceiro nível de “empoderamento” que poderíamos chamar de societal? A pergunta liga portanto o empoderamento à uma prática cidadã esclarecida e responsável.

Pois bem, para minha surpresa, existe uma visão brasileira tradicional sobre o assunto, sugerida pelo educador Paulo Freire. Para ele, o “empowerment”, em sua versão original, enfatizaria a problemática da liberdade individual, pilar fundador da sociedade norte americana. Apesar de reconhecer que tal prática seja um passo necessário à uma prática cidadã mais responsável, ela, em si, não seria suficiente para que o salto entre o nível comunitário e societal ocorra. Para tanto, Paulo Freire reforça a necessidade de conscientização, um processo mais amplo do que o empoderamento. Ou, melhor dizendo, o empoderamento como ferramenta necessária, passo obrigatório rumo à uma conscientização que permita gerar mudança saudável de entendimentos e comportamentos, não somente no contexto individual ou do grupo, mas também à nível societal.

Como encorajar então esse movimento de conscientização coletiva? Até onde pude perceber nas poucas leituras que eu realizei sobre o assunto, as áreas da saúde, entre elas medicina comunitária e saúde coletiva parecem ser vanguardistas no assunto incentivando a implementação de ações diversas, transdisciplinares e transdimensionais, que auxiliem nesse tal salto de conscientização. Não por acaso, o amigo que citei no início do artigo atua em pesquisas na área de saúde coletiva.

A meta é alvejar tanto o nível individual do empoderamento, ou seja, reconhecer a necessidade de transformar-se, integrar novos hábitos em todas as áreas de sua vida que sirvam de “seguros” por assim dizer à sua saúde física, emocional e mental, como o nível do empoderamento comunitário em ações conjuntas destes indivíduos, enfrentando perigos e desafios similares para que, juntos, achem soluções viáveis e sustentáveis, perante por exemplo, problemas ligados à sujeira nos ambientes, cuidados com a água, elaborando e implantando ações reparadoras e educativas. Assim, há, claramente, a necessidade de implantação de políticas públicas que permitam que esses indivíduos e coletividades consigam reconhecer e assumir suas responsabilidades. Cuidado, a meta não é que a política pública se substitua ao esforço local. Ao contrário, trata-se, nas políticas públicas sugeridas, de dar apoio ao processo de responsabilização e conscientização, delegando poderes a estes, em vez de tutelá-los: um voto de confiança em suas capacidades criativas na busca de soluções que façam sentido e gerem, portanto, verdadeira diferença no contexto específico destes indivíduos e comunidades ou grupos.

Baseado nesses exemplos da área de saúde e seguindo o raciocínio proposto na prática cidadã em política, haveria, no meu entender uma necessidade de revisão profunda das práticas políticas tradicionalmente diretivas. Estas deveriam privilegiar uma postura que foque o suporte às iniciativas isoladas, fomentando meios para que estas possam florescer e sustentar-se, respeitando suas especificidades. Ou seja, trata-se de estabelecer políticas que deem mais poder e autonomia às ações locais, micro ações, que deem mais visibilidade e acesso ao cidadão para expressar suas necessidades e expectativas, seja em nome de um grupo ou representando uma demanda difundida na sociedade como um todo.

Aquilo me lembra a prática da democracia participativa, um movimento identificável em vários países e frequentemente viabilizada com uso da ferramenta internet, incluindo, por exemplo, iniciativas para propor projetos em plataformas especiais oferecidas por Governos e, que, a partir de um determinado número de votos recebidos, passam a ser pauta obrigatória para o poder legislativo. As iniciativas de transparência de contas, convite à organizações não governamentais e representantes de coletividades em decisões específicas integram um conjunto de ações que configuram uma nova maneira de se fazer política, de ser cidadão. De novo, estas tendências estão surgindo agora. Sua consolidação depende de mudança nas mentalidades a respeito da política, sujeita a crítica e rejeição, após anos de práticas tendendo à imposição e uniformização. 

O empoderamento como caminho para conscientização e consequente mudança societal é possível, sim. Para concluir, permito-me reproduzir abaixo as palavras de Paulo Freire quando indagado sobre a possibilidade efetiva de mudanças na sociedade:

Se é possível obter água cavando o chão,
se é possível enfeitar a casa,
se é possível crer desta ou daquela forma,
se é possível nos defender do frio ou do calor,
se é possível desviar leitos de rios, fazer barragens,
se é possível mudar o mundo que não fizemos, o da natureza,
por que não mudar o mundo que fazemos, o da cultura, o da história, o da política?