sábado, 18 de fevereiro de 2017

Laico, pero no mucho


Somos uma nação de formação histórica católica que, através da bestialidade contra as crenças de povos não europeus, aniquilou culturas e religiões indígenas e africanas, com o objetivo de impor a esses povos os hábitos e costumes europeus. No tocante às religiões de matriz africana, encontramos ainda hoje uma crescente intolerância não mais ordenada pelo Estado, mas por adeptos de religiões cristãs.
Durante a segunda metade do século XIX, o catolicismo no Brasil passou por um processo de expansão e consolidação, associando-se de forma rígida à cultura e identidade brasileira. A relação que o brasileiro tem com a religião é um reflexo das nossas contradições como sociedade, onde há um gigantesco abismo entre o que é proferido e o que é executado, pois a religiosidade brasileira é plural, diversa, ampla, sincrética, heterogênea e plástica.
Nas últimas décadas, verificamos no Brasil um intenso crescimento do número de evangélicos à custa de um lento, mas constante, declínio católico. Segundo o instituto Datafolha, o número chega a 29%, sete pontos percentuais a mais do que o Censo 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), registrou. A tendência de expansão desse segmento religioso reflete um crescimento da influência dos evangélicos nas transformações culturais e políticas do Brasil recente, como observamos nas ações de parlamentares evangélicos em relação aos direitos das mulheres e de LGBTs. Atualmente, no Congresso, há a maior bancada evangélica da história, com 75 deputados federais e três senadores evangélicos. Vimos recentemente, durante o processo de impeachment da ex-presidente Dilma, uma coesão da bancada evangélica que, através de discursos ignóbeis e pífios em muitos momentos dedicados a “Deus”, apoiaram maciçamente o impedimento. Esse mesmo grupo político-religioso se alinha à dita direita do espectro político para defender pautas conservadoras e preconceituosas (homofobia, machismo e racismo) no campo dos costumes, políticas sociais e econômicas.
Um país secular ou laico é um conceito onde o poder do Estado é oficialmente neutro no campo religioso, não apoiando ou discriminando nenhuma religião ou a ausência dela, opção que representa atualmente, segundo pesquisa Datafolha realizada em dezembro de 2016, 1% da população brasileira.
Um Estado laico não permite a interferência de correntes religiosas em matérias sociopolíticas e culturais, o que é o oposto ao que se observa atualmente no Brasil. Nos últimos anos, a bancada evangélica vem apresentando projetos extremamente retrógrados, como o projeto de lei do aborto, que cria empecilhos para o direito constitucional das mulheres vítimas de violência sexual realizarem aborto na rede pública de saúde; ou o projeto de lei da redução da maioridade penal, aprovado na Câmara e que aguarda análise do Senado, que teve a tolice de usar passagens bíblicas para justificar a redução. Outra aberração apresentada é o Estatuto da Família que determina que família é constituída apenas pela união entre homem e mulher.
Outro fato que causa estranheza no seu antagonismo ao Estado laico é o uso de símbolos religiosos, exclusivamente cristãos, em repartições públicas. Esses setores são um bem público que pertencem a todos os cidadãos, o que caracteriza no mínimo um desrespeito ao princípio da isonomia. Por que usar apenas uma cruz cristã? Poderíamos adicionar um orixá do Candomblé, ou a lua crescente com estrela do Islamismo, ou, talvez, um pentagrama Wicca, afinal os símbolos de todas religiões têm para os seus seguidores o mesmo valor e a mesma importância que tem a cruz para os Cristãos.
Fomos cunhados como sociedade no molde pequeno-burguês cristão. A Igreja católica foi a matrix que construiu os valores, a moral, e a ética do corpo social. Felizmente, nas últimas décadas, tivemos importantes avanços na sociedade brasileira que começaram a partir do movimento feminista que surgiu no Brasil nos anos 70, com decisivas contribuições no processo de democratização do Estado, além de facultar à mulher autonomia sobre seu corpo pelo exercício prazeroso da sexualidade, podendo decidir sobre quando ter ou não filhos. Em contrapartida, nos últimos anos, estamos experimentando uma nostálgica tendência “retrô” por períodos medievais, que nos suscita uma grande apreensão em relação ao que está por vir. Há atualmente no Brasil um forte grupo político-religioso, com objetivos e propostas bem definidas, que a cada dia ganha mais adeptos. O fenômeno é fruto de uma gigantesca crise econômica e política que o País atravessa e que a cada eleição adquire mais poder político.
Na discussão pública não pode haver pensamento religioso, assim como opiniões e visões pessoais não podem servir de parâmetro para propósitos que envolvam toda uma sociedade. Tenho uma visão muito particular sobre religião, o que envolve o fato de eu ser ateu desde os dez anos. Aprendi desde cedo que religião não define caráter, valores ou dignidade e que não existe religião boa, mas sim pessoas boas que às vezes têm religião. 

Particularmente, não me incomodo com políticos com crenças religiosas, porém sinto repugnância em saber que minha vida e minhas escolhas podem ser influenciadas direta ou indiretamente por leis baseadas em “princípios” religiosos. Permitir algo dessa natureza seria um retrocesso cultural, político e intelectual sem precedentes na história do País.

domingo, 12 de fevereiro de 2017

Mais empatia, por favor

Muito me agrada compreender e colocar em prática a empatia. Longe de ser aquele papo clichê que anseia, sem esforço algum, se tornar alguém melhor ou apenas introduzir a expressão de forma corriqueira em meu vocabulário. Vai além. 

Costumo dizer que a empatia nos confunde muitas vezes em acharmos que praticá-la é apenas “simpatizar” por lutas diferentes das nossas ou “ter pena” de certo alguém e então o ajudar. Acredite, o caminho é outro.... Se colocar no lugar do outro por meio da imaginação, compreendendo suas perspectivas/sentimentos e usando essa compreensão para guiar as próprias ações tem o poder de promover profundas mudanças sociais quanto de transformar nossas vidas. É o nascimento de uma revolução nas relações humanas. 

Sou uma admiradora do Direito Constitucional, sendo assim, reflito bastante sobre nossa Constituição e, automaticamente, entro no viés de como é positiva a adesão dos direitos humanos na última Carta que nos segue até agora. Mas, como bem sabemos, a nossa Legislação está muito além da realidade, faltando compatibilidade necessária entre seu aspecto formal e o que existe de fato.

Então, sem grandes esforços, penso na poderosa ligação em que o uso da empatia se faz necessária para enfrentarmos as crises e ultrapassar todos esses problemas de política, pobreza, intolerância religiosa e até mesmo essas divisões sociais que o abuso dos direitos humanos nos traz.

Também penso em como a ideia (e de certa forma, quase que uma teoria aplicada por alguns autores) de que as emoções ficam de fora de uma decisão judicial, por exemplo. Como é definido um bom juiz, então? Um magistrado com a finalidade de obter a melhor solução, a qual deve satisfazer não apenas as partes envolvidas, mas também à própria sociedade. Mas será que apenas com o conhecimento técnico, vivência, capacidade de observação e sua experiência ele alcançaria? Eu não tenho dúvidas de que uma profunda postura empática, face aos problemas que lhes são apresentados, tem total importância e rumo para as suas decisões.

E, se a finalidade de uma ação judicial é de atender a uma necessidade e resolver uma situação de disputa, a empatia se encaixa perfeitamente para aliviar o mal-estar ou evitar mais conflitos, certo? Os advogados que os digam.

Como estudante de Direito, não fugi do rumo que o texto tomou e segui nos exemplos básicos dentro da área jurídica concluindo como a sua aplicação se desenvolve de forma discreta e como pode ser ainda mais explorada.

Mas, esse texto ultrapassa a intenção de citar algumas conclusões ou exemplos da empatia no meu querido Direito. Minhas palavras aqui ultrapassam esta área e tentam demonstrar como é simples e bonita a possibilidade de melhorar a nossa vida, pessoal ou profissional, através de um sentimento que já nasce com a gente. Ter equilíbrio, ser um ser humano altruísta e proativo não é fácil, requer paciência, que requer a arte de colocar em prática toda a sabedoria adocicada pela sutileza da espera.

Aos 18 anos conheci o livro “Uma ética para o novo milênio” do Dalai Lama em que também tratava sobre a empatia e dava um toque especial ao apresentá-la como um bom remédio para a ansiedade a qual se faz presente tão intensamente em nós.

“As coisas e acontecimentos só ocorrem como resultado de inumeráveis causas e condições. Nossa tendência é nos concentrarmos exclusivamente em um ou dois aspectos do que está acontecendo. Ao agir assim, inevitavelmente nos limitamos a procurar meios para superar apenas aqueles aspectos. O problema é que, quando não os encontramos, corremos o risco de cair em total desânimo e desorientação. O primeiro passo para superar a ansiedade é, então, desenvolver uma perspectiva adequada da situação.

Podemos fazer isso de diversas maneiras diferentes. Uma das mais eficazes é procurar desviar o foco da atenção de nós para os outros (...).

Bem, de forma saudável esse trecho me inspira e senti a necessidade de compartilhar. Quando desejo e peço mudanças eu também as ofereço, da minha forma, mas ofereço, e a minha escolha é a empatia. Pratico de forma saudável e motivadora. 


Não perde tempo e também escolhe a tua, quem sabe um grande segredo coletivo não está aí...

sábado, 4 de fevereiro de 2017

“Pátria Madrasta Vil”: uma revolução silenciosa em curso?

Descobri recentemente um texto intitulado “Pátria Madrasta Vil”. A composição, de autoria de Clarice Zeitel Vianna Silva, na época estudante de direito na UFRJ, venceu, junto com mais 99 textos, um concurso nacional organizado pelo jornal Folha Dirigida e UNESCO Brasil, envolvendo 50.000 candidatos. O ano era 2008. A UNESCO patrocinou a iniciativa como meio de apoio à divulgação dos oito objetivos para o desenvolvimento do Milênio aprovados pelas Nações Unidas em 2000 por 189 países, entre eles o Brasil, a serem trabalhados até o ano 2015. Dentre os objetivos, constavam a eliminação da pobreza e combate à desigualdade, temas centrais do referido concurso. Os 100 textos foram reunidos e publicados em uma coletânea disponível na biblioteca virtual da UNESCO. Para os interessados, o livro é acessível no seguinte endereço: http://unesdoc.unesco.org/images/0015/001576/157625m.pdf

O texto-poema de Clarice acabou naquela época ganhando destaque nacional. A autora foi convidada em diversos eventos. O conteúdo provocador e ácido incendiou as redes sociais, seja para ataca-la ou defende-la, alvo de críticas e elogios, tanto na forma como no conteúdo do texto. Por ser extenso, só reproduzirei aqui os primeiros versos e comentarei outros trechos. Reitero portanto meu convite aos interessados para acessar o retro mencionado link e consultar a versão integral.

Assim começa o poema intitulado “Pátria Madrasta Vil”:


“Onde já se viu tanto excesso de falta?Abundância de inexistência...Exagero de escassez...Contraditórios?Então aí está!O novo nome do nosso país!Não pode haver sinônimo melhor para BRASIL.”

Partindo de um trecho do hino nacional, “dos filhos deste solo és mãe gentil, pátria amada, Brasil”, Clarice elabora uma extensa argumentação rejeitando a parábola ora proposta de “mãe gentil” para a pátria Brasil. Em subsequentes versos, sublinha contradições, enganações, hipocrisias e ilusões vividas por sucessivas gerações de cidadãos “que não aprenderam a ser cidadão” (sic).

No decorrer de sua aclamação, acaba enaltecendo a necessidade por mudanças estruturais, revolucionárias, que “quebrem esse sistema-esquema social montado” através de mudanças que, de fato, transformem e não simplesmente reproduzam os referido esquema sob novas máscaras.

Ela reconhece, no entanto, que para tal mudança ocorrer, falta um fator fundamental que permita o alcance da igualdade na sociedade brasileira: “nossa participação efetiva”. Finaliza afirmando que somente uma revolução estrutural “de dentro para fora e que não exclua, nada nem ninguém de seus efeitos” conseguirá acabar com a pobreza e desigualdade no Brasil, pedindo portanto um posicionamento individual perante o mundo, perante o coletivo, que ela resume na expressão “cada um por todos”.

Não é minha intenção neste artigo julgar ou revisitar o debate da época. Como já disse, muito já foi escrito a respeito em trocas extensivas de opiniões e contra afirmações para as quais pouco teria de interessante a somar. Quase uma década se passou desde então. Os objetivos onusianos do milênio estabelecidos para 2015 foram reconduzidos em essência, mesmo que sob renovadas luzes, na chamada agenda “pós 2015”. O grito de Clarice quanto à problemática estrutural brasileira, parece-me, ganhou novo destaque com os acontecimentos destes últimos anos, independentemente dos julgamentos de valor sobre a veracidade ou coerência das afirmações por ela listadas.

O fato é que a leitura do texto me remeteu aos ensinamentos de um professor de filosofia chileno, Luiz Razeto, que veio compartilhar visões da academia sobre os contextos e condições de criação de uma nova civilização, durante conferência, ano passado, em um congresso sobre cidadania planetária em Fortaleza – CE.

Não pude deixar de reparar que certas das afirmações de Clarice ecoavam no discurso do professor. Para resumir, irei manter-me no eixo em torno do qual este desenvolveu sua apresentação: a capacidade de inclusão como fator fundamental a partir do qual pode-se avaliar a sobrevivência de uma civilização ou nascimento, em meio a muitas turbulências, de uma nova civilização enquanto a antiga se desintegra, seja gradualmente, seja abruptamente, em processo caótico de transição até que os novos paradigmas consigam sobrepor-se aos antigos.

O professor enfatizou que, enquanto a deterioração acontece essencialmente à nível macrossocial nas grandes e condicionadas estruturas políticas, econômicas e culturais que começam a não mais conseguir cumprir com suas missões, a nova civilização só pode começar a nível microssocial, demandando participação cidadã ativa e, claro, bastante tempo, através de iniciativas particulares e concretas.

Clarice, em seu poema, lançou um grito um tanto pessimista sobre a situação da sociedade Brasileira, lamentando a ausência do cidadão para que transformações consigam nascer e se desenvolver. Dez anos depois, à luz dos eventos mais recentes e observações pessoais, portanto, sujeitas a clara subjetividade, devo confessar certo otimismo apesar dos obstáculos e situações enfrentados nas grandes estruturas da sociedade.

Vejo cidadãos mais ativos, cobrando posturas, quaisquer que sejam, em debate caloroso e saudável sobre tais estruturas. Mas também vejo inúmeras iniciativas concretas de ajuda ao próximo. Brasileiros estão cada vez mais engajados em ajudar em associações, ONGs e outras entidades, formais ou informais para auxiliar os necessitados. Á nível mais pessoal ainda, vejo mudanças em perfis de consumo, uma consciência mais esclarecida surgindo sobre a necessidade do respeito à natureza. Virou rotina o uso dos espaços públicos e de trânsito na cidade, para esporte e passeios nos fins de semana, envolvendo família e amigos, espaços que até pouco tempo não eram usados para tais.

Seguindo a raciocínio proposto pelo Professor Razeto, uma transformação estaria de fato ocorrendo à nível microssocial, talvez ainda tímida, minoritária mas ganhando novos adeptos em ritmo acelerado pelo que consigo testemunhar. Em menos de 10 anos, em meio à uma crise sistêmica, saímos de uma situação de lamentação e críticas ásperas para uma nova era de ação local engajada, servindo de exemplo multiplicador. Como mencionado em artigo escrito por uma das coautoras do Matutando o Brasil, “um novo Brasil está germinando”. Sim, Clarice, a sua sonhada revolução parece já estar em curso, talvez ainda silenciosa, mas bem real. Não há mais lugar para exacerbado pessimismo. Por mais que muito haja a ser feito e enfrentado, a roda brasileira da fortuna começou a girar, incentivando participação cidadã ativa. Paremos de focar o que não funciona e elejamos a ação local, aquela bem ao nosso alcance como método eficaz de verdadeira e testemunhável transformação. São estas ações que renovam energias e esperanças favorecendo a construção de um país e, por consequência, de um mundo menos pobre e desigual, fundamentado na prática da inclusão e do respeito a si mesmo, ao próximo e à natureza.