segunda-feira, 22 de agosto de 2016

VIOLÊNCIA E COTIDIANO ESCOLAR

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O objetivo deste texto é apresentar uma parte das conclusões que cheguei através da minha pesquisa de mestrado na Universidade do Estado da Bahia, sobre violência na escola. A pesquisa seguiu uma orientação etnográfica e foi realizado em uma instituição da rede pública de Salvador entre os anos de 2009 e 2010. Sem desconsiderar a dimensão extramuros da violência, o estudo visou problematizar a dimensão local do fenômeno. Pretendeu-se, desta forma, reconhecer o papel ativo dos estudantes, professores, coordenadores, diretores e outros funcionários, como coautores na produção e no enfrentamento das problemáticas constituídas no mundo da escola.
Violência vem do latim, violentia, que reporta a vis, que significa força física, vigor.  Para Zaluar (1999), essa força torna-se violência quando ultrapassa determinados limites, ou perturba acordos tácitos e regras que ordenam relações. A percepção do limite, da perturbação e do sofrimento causado, que vai caracterizar um ato como violento ou não, sempre varia de acordo o contexto histórico e cultural. Isso dificulta elaborar uma definição fechada do fenômeno, sempre contingente e multifacetado. A autora situa, em consonância com diferentes pesquisadores (ADORNO, 2002; DAMATA, 1981; VELHO 2004; KANTE DE LIMA, 1999) que a violência constitui um tipo de relação social marcada pela negação do outro devido ao “[...] pouco espaço existente para o aparecimento do sujeito da argumentação, da negociação ou da demanda, enclausurado que fica na exibição da força física pelo seu oponente ou esmagado pela arbitrariedade dos poderosos que se negam ao diálogo” (ZALUAR, 1999, p. 8).
A violência fatal no Brasil, ao longo dos últimos 20 anos, se tornou um fenômeno endêmico, que produziu, em 2014, 59.627 homicídios. Uma parte expressiva dessas mortes, contudo, não decorreram de atividades criminosas, como tráfico de drogas ou assaltos. Uma pesquisa realizada pelo Conselho Nacional do Ministério Público, entre os anos de 2011 e 2012 em 16 Unidades da Federação, aponta em outra direção. A maioria dos homicídios elucidados fora motivado por conflitos considerados fúteis, como ciúmes, conflitos entre vizinhos, desavenças, discussões, violência doméstica, desentendimento no trânsito, dentre outras. Esses números confirmam que a violência fatal no Brasil não deve ser pensada como mera reação a uma ordem estabelecida, ou como “desvio” do sistema, mas como um elemento bastante enraizado da cultura, sendo que o desrespeito ao outro é regra e matar tornou-se uma possibilidade banal.
 Esta violência presente na cultura, inevitavelmente, penetra no interior da escola afetando a sua dinâmica de funcionamento. Contudo, a escola não é situada neste estudo como mero reflexo passivo das estruturas da sociedade. As violências que acontecem no seu interior se relacionam, ao mesmo tempo, com o contexto histórico e social do qual é parte e com os padrões de interações desenvolvidos no seu cotidiano. Considerando-se esta complexidade, seguem os principais contextos que foram mapeados na produção dos conflitos e das violências na escola.
No primeiro contexto, tratava-se da violência institucional, que figurava nos padrões de dominação instituídos. Na escola pesquisada inexistiam maiores preocupações em negociar as regras de convívio, prevalecendo uma lógica unilateral, sendo desconsiderada as vozes dos estudantes. Não existia uma dominação racional legal, pode-se ler em Weber, baseada em um pacto social, mas relações tradicionais sem legitimidade. Assim, as punições constituíam os principais mecanismos de controle dos estudantes.
Segundo Weber (1991), o poder se torna legítimo quando se estabelece a obediência voluntária. Em tal contexto, a figura de poder é percebida como dotada de autoridade e a ordem é cumprida por adesão, diferente da obediência por coerção, que funciona através do medo das possíveis consequências do ato transgressor. Os gestores da escola não consideravam a importância da legitimação das regras de convívio, que eram impostas de forma unilateral. Essa descrença generalizada na democratização da instituição era um componente extremamente enraizado na cultura local, potencializando muito os conflitos existentes.
O segundo padrão representa o que Zaluar (2001) batizou de violência psicológica, “que se manifesta nos processos de avaliação e nas formas de interação que se estabelecem entre diretores, professores, funcionários, alunos e responsáveis”. Nestes modelos, a responsabilidade pelo fracasso escolar, seja a repetência ou a evasão, é creditada sempre aos estudantes, percebidos como portadores de transtornos, deficiências ou indisciplinas. Segundo Zaluar esta percepção produz humilhação nos jovens, comprometendo sua autoestima, podendo gerar sequelas profundas nas suas vidas. Por outro lado, as formas de interação dominantes eram marcadas pelo não diálogo e pela fragilidade dos vínculos entre estudantes, professores e gestores, contribuindo para gerar um clima de insatisfação e revolta.
No terceiro contexto, que resultava do primeiro e do segundo, existia uma reação contra a instituição, que se expressava nas violências dirigidas às pessoas ou aos objetos que representavam a escola – depredações, furtos, xingamentos e ameaças. Esses conflitos refletiam a insatisfação dominante entre estudantes com os modelos de relacionamentos estabelecidos, particularmente o modelo de autoridade. “Aqui dentro é como uma prisão, qualquer coisa eu pego todo mundo amarro e toco fogo” (Fala de aluna do 8ºano). O resultado era a constante depredação do patrimônio escolar, que figurava em portas destruídas, paredes pinchadas, vasos sanitários danificados, equipamentos furtados, além das desobediências generalizadas nas salas de aula, gerando um ambiente problemático para a aprendizagem.
O quarto contexto decorria de algum tipo de conflito entre os estudantes. Uma característica na dinâmica desses conflitos era o tipo de motivação que, na sua grande maioria, não envolvia maiores divergências ou disputas. Havia um clima que reeditava os cenários extramuros, tornado qualquer mal-entendido, como um olhar ou o tom de voz, justificativa para agressões. A descrença no diálogo ou na mediação institucional como mecanismo para resolver os conflitos era geral. A grande maioria dos estudantes só parecia acreditar em um tipo de justiça: aquela que eles podiam fazer com as próprias mãos.
No quinto contexto, os episódios de ataques e as lutas frequentes eram experimentados como uma grande diversão. Elias e Dunning (1992) chamam a atenção para a violência expressiva, que visa produzir satisfação emocional e não se relaciona, necessariamente, a qualquer conflito. Apesar da escola pesquisada possuir quadras de esporte, além de equipamentos de jogos de salão, auditório e sala de vídeo, durante os horários livres não oferecia qualquer atividade recreativa ou lúdica para os estudantes, que ficavam espalhados nos pátios e corredores. Uma parte das agressões e das lutas que se alastravam, representava a principal opção construída pelos estudantes para se divertirem.
O sexto contexto, o identitário, lança luz sobre uma famosa definição amplamente utilizada entre os alunos: “Aqui a gente bate para mostrar quem é melhor”. Nesse contexto, o uso da força física representava uma importante referência para a afirmação de cada um na dinâmica das relações locais.
Em uma sociedade tradicional e altamente hierarquizada como foi o Brasil até meados do século XX, a identidade cultural era uma construção muito mais imposta de fora para dentro, a partir do lugar que o sujeito ocupava na trama social. No geral, possuía um caráter relativamente definitivo, com poucas chances de mudanças. Questões como nacionalidade, raça, sexo e religião eram as principais referências. 
Nos cenários contemporâneos, como lembra Bauman (2005) a crescente valorização do individualismo enfraqueceu o peso do mundo tradicional, invertendo o processo de construção identitária, que se tornou mais flexível e negociado, contando muito a escolha pessoal. Assim, o sujeito pode transitar mais pelo espaço social, mudando, por exemplo, de religião, de sexo, ou mesmo etnia, a partir dos seus próprios critérios subjetivos de identificação. Esse processo enfraqueceu os vínculos de pertencimento, deixando o sujeito, ao mesmo tempo, mais “livre” para ser quem ele quiser e mais inseguro e perdido diante de tantas incertezas.
Por outro lado, ninguém cria sozinho ou escolhe para si uma identidade como quem pega uma roupa no armário. A identidade é constituída nos processos de interação social, onde o olhar do outro funciona como um espelho. É o reconhecimento do olhar do outro que nos possibilita a experiência de uma identidade. “Nós nada somos e valemos nada se não contamos com o olhar alheio acolhedor, se não somos vistos, se o olhar do outro não nos recolhe e salva da invisibilidade” (SOARES, 2013).
No caso do Brasil, esse processo se revela, particularmente, problemático em função da extrema desigualdade social, onde milhões de jovens são condenados à invisibilidade. Um contexto paradoxal, marcado, de um lado, pelo consumismo e pelos ideais de democracia e liberdade e, de outro, pela exclusão e pela miséria. Assim, como afirma o antropólogo Luiz Eduardo Soares (2013), muitos jovens, condenados a uma existência sem perspectivas ou possibilidades de reconhecimento social, tomam o caminho da violência como última maneira de construírem uma identidade e se tornar visíveis.
As escolas merecem destaque especial nesse processo, pois constituem espaços de aprendizagens e de formação, onde os jovens passam parte expressiva de suas vidas. Deveriam, portanto, possibilitar aos estudantes sentirem-se acolhidos para construir seu projeto de vida. Contudo, não é isso que se verifica na grande maioria das escolas públicas brasileiras, onde os elevados índices de evasão e fracasso apontam para outra direção. Segundo Relatório de Desenvolvimento do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (2013), um a cada três alunos que inicia o ensino fundamental no Brasil, abandona a escola antes de completar a última série. Temos o quinto maior índice de evasão escolar entre 100 países pesquisados, ficando atrás da Bósnia Herzegovina, das ilhas São Cristóvão e Névis, no Caribe. Na América Latina, só Guatemala e Nicarágua nos superam.
No caso específico da escola pesquisada, o uso de violências constituía um componente cultural amplamente valorizado e aceito pela maior parte dos estudantes, independente do gênero, idade ou cor da pele. Embora esse processo se relacionasse com o contexto escolar marcado por um clima de insatisfações, não representava mera reação contra a instituição ou produto dos conflitos entre os alunos. Tudo indica que, na falta de mecanismos institucionais legítimos, que possibilitassem reconhecimento e valorização, os jovens utilizavam a violência como um recurso para sair da invisibilidade e ganharem uma certa identidade. Um quadro problemático, que reedita os cenários extramuros da escola, onde as chances que a sociedade oferece para os jovens mais pobres construírem um projeto de vida são muito frágeis.
Uma problemática considerada básica para tentar alterar essa dinâmica em contexto escolar consiste em abrir mão de modelos de autoridade centralizadores, em nome de modelos mais democráticos, que se estabeleçam a partir de um pacto social, onde as vozes dos estudantes sejam contempladas. As violências proliferam em contextos sem cultura de negociação ou onde as regras de convívio caíram no descrédito.
Um passo fundamental para tentar pacificar as relações na escola consiste em redimensionar a crença na importância dos castigos e desenvolver mecanismos mediadores legítimos, que se tornem opções válidas para a resolução dos conflitos locais. Não apenas entre os estudantes, mas de toda comunidade acadêmica. A escola, enquanto espaço de convívio, reúne diferentes crenças, interesses e perspectivas. O grande desafio dos seus gestores será aprender como mediar essas relações. Um processo que dificilmente será conseguido através de imposições e castigos. Isso não significa afirmar que seja desnecessário desenvolver mecanismos de coerção, mas focar nos ideais de democracia, de justiça e, principalmente, de respeito às diferenças, os principais meios para enfrentamento das violências na escola.  

Por fim, é importante assinalar que a escola sozinha não tem o poder de mudar padrões fortemente enraizados na sociedade. Ao adotar práticas mais democráticas na gestão dos conflitos, deixará de reproduzir condições favoráveis para as violências proliferarem no seu interior. Existem diferentes escolas no Brasil e no mundo adotando estes princípios, com resultados muito animadores, como a Escola Municipal de Ensino Fundamental Campos Sales em São Paulo, a Escola Casa Via Magia em Salvador, o Colégio Asas em Feira de Santana e a famosa Escola da Ponte em Portugal. Estas escolas fortaleceram a crença no diálogo e na mediação de conflitos. Esse é o grande desafio das escolas brasileiras no século XXI. Não há como educar jovens forjados em uma cultura individualista, que tem como pressuposto básico a liberdade de escolha, de maneira unilateral, através de imposições e castigos. 
       

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