Um primeiro
aspecto considerado relevante para compreender o fenômeno das violências no
Brasil se relaciona com o nosso modelo de sociedade, altamente desigual e
excludente na sua forma de organização e distribuição dos bens culturais. Uma
característica que muito contribuiu para a formação desse quadro social se
relaciona com a presença da escravidão no Brasil até final do século XIX. Essa
prática ajudou a naturalizar a desigualdade entre os indivíduos. Na legislação
Colonial e Imperial, por exemplo, diante da Lei Civil o escravo era, ao mesmo
tempo, coisa e pessoa, embora estivesse privado de todos os seus direitos
civis. Por outro lado, diante da Lei Penal, o escravo sujeito ativo ou agente
do crime era considerado pessoa e não coisa, ou seja, respondia plenamente
pelos seus atos, sendo que a condição de escravo era considerada um agravante (WOLKMER, 2008).
Com a abolição,
embora os indivíduos de pele negra tenham se tornado iguais aos de pele branca
diante da lei, na prática a discriminação continuou, inclusive com respaldo da
antropologia criminal emergente. O médico maranhense Nina Rodrigues (1862-1906)
foi um importante divulgador das ideias racistas no Brasil, postulando uma
inferioridade dos negros e mulatos em relação aos brancos. Rodrigues (1957)
acreditava que os “não brancos” possuíam uma tendência natural a
degenerescência e ao crime, defendendo, inclusive a importância de uma
legislação especial para essas “raças”.
Mesmo com o
final da escravidão e da Monarquia, o modelo de República constituída no
Brasil não tinha como fundamento um projeto social que valorizasse os
interesses coletivos. Muito pelo contrário, a nossa República se desenvolveu
marcada pela desigualdade, onde os ideais de cidadania nunca se fortaleceram.
Assim, o nosso Estado se constituiu subordinado a interesses de determinados
grupos ou famílias e não a partir de um pacto social baseado em regras
formalmente definidas e aceitas por todos. A coisa pública é, nesse modelo,
percebida como privada, pois não há uma instância universal legitimada na
origem do sistema político e administrativo - o que existe são sempre núcleos
locais de poder patrimonialista no sentido elaborado por Faoro (1989).
Desenvolve-se,
assim, uma elite parasitária do poder que manteria o padrão de gestão
tradicional e patrimonial decorrente do latifúndio patriarcal. Esse modelo
sobrevive em diversas roupagens até a atualidade, fazendo com que os avanços
sociais sejam muito lentos e possibilitando enorme concentração de riquezas
para poucos e pobreza extrema para muitos. Um projeto excludente e desigual nas
ofertas de acesso aos bens culturais. O pobre no Brasil é, antes de qualquer
coisa, alguém a que fora negado o acesso às condições básicas de vida, como
escolarização e salários dignos. Uma pobreza produzida pela desigualdade na
distribuição da renda e das oportunidades de inclusão econômica e social.
Uma variável
considerada central para a consolidação desse projeto desigual e injusto de
sociedade foi o fortalecimento de ideologias individualistas. Esse processo se
relacionou, particularmente, com a expansão da economia de mercado, as
migrações, a industrialização, a introdução de novas tecnologias e o
florescimento de uma cultura de massa. A disseminação de valores
individualistas e a concomitante ampliação das possibilidades de escolha dos
estilos de vida implicaram na diminuição do poder de coerção de instituições
tradicionais, como família ou religião. Os indivíduos sentiram-se, então, mais
“livres” para fazerem suas escolhas a partir dos seus próprios critérios
“pessoais”. Velho (200) lembra que, mesmo considerando que a tensão social
sempre existiu no Brasil, as interações eram mais pacíficas em função da lógica
clientelista existente em uma sociedade tradicional. Os conflitos tendiam a ser
resolvidos através de negociações, que impediam o confronto físico direto.
Embora o
desenvolvimento do individualismo seja considerado condição necessária para o
desenvolvimento da democracia, não é condição suficiente. Em determinadas sociedades como na
americana, canadense ou na australiana, o movimento do individualismo aconteceu
de forma a possibilitar a crença no contrato social como valor. A noção de que
o poder político é consequência e expressão das relações entre
indivíduos-cidadãos constitui a base dessas sociedades.
No Brasil, o
individualismo constituído se acomodou a uma visão de mundo na qual a sociedade
é percebida de forma desigual e hierarquizada. Foram criadas condições para o
fortalecimento de uma cultura antidemocrática, marcada pela frágil valorização
dos interesses coletivos. Assim, desenvolve-se um modelo de individualismo
perverso, onde o outro é percebido como alguém inferior, que pode ser ignorado,
explorado ou destruído de acordo com os interesses pessoais. Esse modelo
de individualismo, embora não seja homogêneo, guardando as devidas
particularidades e variações locais, é um traço fortemente presente em todo o
tecido social. Constitui, ao mesmo tempo, causa e consequência de uma dinâmica
belicosa, onde as violências são naturalizadas e até justificadas.
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