quarta-feira, 1 de junho de 2016

Desigualdade, individualismo e violência no Brasil



Um primeiro aspecto considerado relevante para compreender o fenômeno das violências no Brasil se relaciona com o nosso modelo de sociedade, altamente desigual e excludente na sua forma de organização e distribuição dos bens culturais. Uma característica que muito contribuiu para a formação desse quadro social se relaciona com a presença da escravidão no Brasil até final do século XIX. Essa prática ajudou a naturalizar a desigualdade entre os indivíduos. Na legislação Colonial e Imperial, por exemplo, diante da Lei Civil o escravo era, ao mesmo tempo, coisa e pessoa, embora estivesse privado de todos os seus direitos civis. Por outro lado, diante da Lei Penal, o escravo sujeito ativo ou agente do crime era considerado pessoa e não coisa, ou seja, respondia plenamente pelos seus atos, sendo que a condição de escravo era considerada um agravante (WOLKMER, 2008).
Com a abolição, embora os indivíduos de pele negra tenham se tornado iguais aos de pele branca diante da lei, na prática a discriminação continuou, inclusive com respaldo da antropologia criminal emergente. O médico maranhense Nina Rodrigues (1862-1906) foi um importante divulgador das ideias racistas no Brasil, postulando uma inferioridade dos negros e mulatos em relação aos brancos. Rodrigues (1957) acreditava que os “não brancos” possuíam uma tendência natural a degenerescência e ao crime, defendendo, inclusive a importância de uma legislação especial para essas “raças”.
Mesmo com o final da escravidão e da Monarquia, o modelo de República  constituída no Brasil não tinha como fundamento um projeto social que valorizasse os interesses coletivos. Muito pelo contrário, a nossa República se desenvolveu marcada pela desigualdade, onde os ideais de cidadania nunca se fortaleceram. Assim, o nosso Estado se constituiu subordinado a interesses de determinados grupos ou famílias e não a partir de um pacto social baseado em regras formalmente definidas e aceitas por todos. A coisa pública é, nesse modelo, percebida como privada, pois não há uma instância universal legitimada na origem do sistema político e administrativo - o que existe são sempre núcleos locais de poder patrimonialista no sentido elaborado por Faoro (1989).
Desenvolve-se, assim, uma elite parasitária do poder que manteria o padrão de gestão tradicional e patrimonial decorrente do latifúndio patriarcal. Esse modelo sobrevive em diversas roupagens até a atualidade, fazendo com que os avanços sociais sejam muito lentos e possibilitando enorme concentração de riquezas para poucos e pobreza extrema para muitos. Um projeto excludente e desigual nas ofertas de acesso aos bens culturais. O pobre no Brasil é, antes de qualquer coisa, alguém a que fora negado o acesso às condições básicas de vida, como escolarização e salários dignos. Uma pobreza produzida pela desigualdade na distribuição da renda e das oportunidades de inclusão econômica e social.
Uma variável considerada central para a consolidação desse projeto desigual e injusto de sociedade foi o fortalecimento de ideologias individualistas. Esse processo se relacionou, particularmente, com a expansão da economia de mercado, as migrações, a industrialização, a introdução de novas tecnologias e o florescimento de uma cultura de massa. A disseminação de valores individualistas e a concomitante ampliação das possibilidades de escolha dos estilos de vida implicaram na diminuição do poder de coerção de instituições tradicionais, como família ou religião. Os indivíduos sentiram-se, então, mais “livres” para fazerem suas escolhas a partir dos seus próprios critérios “pessoais”. Velho (200) lembra que, mesmo considerando que a tensão social sempre existiu no Brasil, as interações eram mais pacíficas em função da lógica clientelista existente em uma sociedade tradicional. Os conflitos tendiam a ser resolvidos através de negociações, que impediam o confronto físico direto.
Embora o desenvolvimento do individualismo seja considerado condição necessária para o desenvolvimento da democracia, não é condição suficiente. Em determinadas sociedades como na americana, canadense ou na australiana, o movimento do individualismo aconteceu de forma a possibilitar a crença no contrato social como valor. A noção de que o poder político é consequência e expressão das relações entre indivíduos-cidadãos constitui a base dessas sociedades.

No Brasil, o individualismo constituído se acomodou a uma visão de mundo na qual a sociedade é percebida de forma desigual e hierarquizada. Foram criadas condições para o fortalecimento de uma cultura antidemocrática, marcada pela frágil valorização dos interesses coletivos. Assim, desenvolve-se um modelo de individualismo perverso, onde o outro é percebido como alguém inferior, que pode ser ignorado, explorado ou destruído de acordo com os interesses pessoais. Esse modelo de individualismo, embora não seja homogêneo, guardando as devidas particularidades e variações locais, é um traço fortemente presente em todo o tecido social. Constitui, ao mesmo tempo, causa e consequência de uma dinâmica belicosa, onde as violências são naturalizadas e até justificadas. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário