Fonte: http://www.crossculture.com/latest-news/the-lewis-model-dimensions-of-behaviour/
(Muito já foi escrito, falado e gritado
sobre os transtornos recentes vividos no seio da sociedade brasileira. As
mídias e redes sociais andam repletas de informações, opiniões, análises,
acusações e advertências. O que eu, um estrangeiro, mesmo sendo um convidado de
longa data naquela casa gigante pela própria natureza, poderia comentar que já
não tenha sido amplamente apresentado, pesquisado e comparado? Antes de tudo,
teria eu esse direito? E, ainda que concedido o direito de opinar, seriam
minhas impressões e percepções, de alguma forma, úteis? Não sei. Diante tantas
incertezas, devo confessar meu traque ao estrear nesse espaço. Não há pretensão
em cobrir o assunto anunciado no título, longe disso. Trata-se de expor algumas
considerações pessoais, portanto, parciais e sujeitas à críticas. O uso
equivocado da emoção em política constitui o foco do presente texto, sob o
prisma de um modelo acadêmico proposto por Lewis.)
Segundo um tradicional adágio brasileiro,
“futebol, religião e política não se discutem”. A sabedoria popular teria
portanto identificado uma característica comum àquelas atividades, sujeitas a
posicionamentos que pouco incentivariam um diálogo aberto e racional. O risco
de desentendimento sem perspectiva razoável de se chegar a um resultado
aceitável para as partes, teria levado a sociedade brasileira a estabelecer uma
lista informal de assuntos não desejáveis em rodas de conversas sociais. Pelo
menos assim foi meu entendimento a respeito do referido adágio quando cheguei
por aqui.
Se olharmos padrões de comportamento em
relacionamentos, sabemos, mesmo intuitivamente, que duas grandes dimensões
costumam reger nossa conduta em sociedade, a emoção e a razão. As dinâmicas de
funcionamento daquelas duas dimensões são ao mesmo tempo distintas e intimamente
ligadas, uma podendo desencadear pensamentos, fenômenos ou sensações na outra,
em processo constante de retroalimentação, que pouco controlamos. Somos, em
regra geral, reféns de nós mesmos. Mas aquelas dimensões são diferentes em seus
impactos. Farei aqui considerações pessoais nada científicas, resultantes de
observações, leituras e conversas. A emoção invade o corpo e consegue teleguiar
nossos reflexos comportamentais em milissegundos. Tanta velocidade nos
incapacita, muitas vezes, de usar com eficácia a dimensão racional para conter
determinados padrões emocionais que gostaríamos de mudar, ou, ao menos,
controlar. Vivemos assim, em meio a uma dança incessante com passos indo do
emocional para o racional e vice versa. O racional gostaria de controlar e pode
até ter a ilusão de que controla. Mas o emocional possui uma força impactante
tão repentina e invasora, que este, regularmente, vem nos lembrar quem de fato
manda naquela birosca chamada corpo.
Li recentemente
relatos de estudos na área de psicologia indicando que agimos de forma
inconsciente em pelo menos 90% de nosso tempo de vigília, ou seja, quando
acordados. Pior, aquela inconsciência é tanto da dimensão racional, em suas
várias obsessões incluindo posse e controle, quanto da dimensão emocional, em
sua capacidade para nos desequilibrar, seja em direção à euforia, seja em
direção aos vales profundos da insegurança e frustração. Resumindo, seríamos
máquinas condicionadas por desejos e pensamentos em constante movimento,
entrando frequentemente em contradição, deixando-nos vulneráveis a qualquer
evento que poderá desencadear efeitos desgovernados nas duas retro citadas
dimensões.
Cada um possui uma formatação única nas
condições de convivência destas duas vertentes de nossa personalidade. Mas há
também uma dimensão coletiva quanto ao padrão de formatação. O adágio serve
aqui de testemunha. Há até estudos a respeito. Um deles foi desenvolvido por Richard
Lewis nos anos 90 sobre interferências culturais (cross culture) em
negociações internacionais. Após anos de pesquisa de campo nos cinco
continentes, Lewis elaborou três grandes categorias de comportamento que
deveriam permitir classificar sociedades em determinados padrões. A foto
encabeçando o texto oferece uma visualização, desenvolvida pelo próprio Lewis,
da repartição dos países entre aqueles padrões. As três categorias são o
“linear-ativo”, o “multi-ativo” e o “reativo”. Muitas sociedades demonstram
aspectos em graus diferenciados de duas destas categorias, conforme vemos na
foto. Mas algumas são avaliadas como essencialmente pertencentes a uma única
categoria. O Brasil está no seleto time dos campeões mundiais na categoria
denominada por ele de “multi-ativos”. Muito resumidamente, as principais
características de tais sociedades dizem respeito ao uso intensivo, em suas
relações, quaisquer que sejam, da emoção, retórica e linguagem corporal.
Tenderiam à dar importância à religião e laços familiares, demonstrariam
compaixão e sensibilidade comunitária, mas também certa volatilidade e grau de
desconforto com autoridade e disciplina. Claramente, aquelas colocações são
muito genéricas, tendências identificadas e postas à prova da generalização,
portanto sujeitas a um reducionismo caricatural.
Feitas essas considerações, voltemos ao
nosso adágio. Ao que tudo indica, a ciência corroborou o que a sabedoria
popular já tinha apontado. Em um país onde a emoção tende a reinar no
estabelecimento dos padrões de relacionamento, alguns assuntos passam a ser
para lá de sensíveis. Ainda assim, não demorei muito para entender que aquele
adágio, na verdade, só se aplicava mesmo à política. Futebol era assunto
incontornável de conversas de mesa, apesar da recomendação popular. Até
religião entrava no rol com certa frequência. Os dois temas envolvem valores
absolutos, típicos da dimensão emocional, o “tudo ou nada”! No futebol, o
espírito de time, a torcida, forja fortes e assumidamente irracionais padrões
comportamentais do tipo “nós contra eles”, motivos de orgulho ou desespero em
um passeio viciante de montanha russa a cada campeonato. Na religião, os
valores absolutos pregados envolvem uma dimensão que eu não tinha até o momento
comentado, propositalmente, a dimensão espiritual. Acredito que aquela dimensão
seja, em sua essência, autônoma em relação às outras duas. Porque? Minha
percepção é que a dimensão espiritual envolve conscientização. Ao
desenvolver-se, “descondiciona” (perdoem minha liberdade com a língua
portuguesa) padrões mentais e emocionais, permitindo trabalhar os 90% de
inconsciência apontados no estudo de psicologia retro citado. O caminho para
desenvolvimento da consciência só funciona, no meu ver, saindo do espiritual
adentrando e descontruindo padrões das dimensões mentais e emocionais. Querer
influenciar o espiritual a partir do mental ou emocional parece-me um tanto
equivocado. Assim, esquemas religiosos que, em nome do indescritível, promovem
supostos ensinamentos, movidos por interesses das dimensões mentais e
emocionais que nada têm a ver com a dimensão espiritual, distorcem ou até
destroem qualquer processo saudável e sustentável de conscientização.
Interessante notar que, apesar do conteúdo fortemente simbólico, a religião
ainda assim conseguia-se gerar conversas civilizadas em rodas de amigos.
Valores, por mais absolutos que sejam, conseguiam ser relativizados e
concessões aceitas em nome do bem estar coletivo. Os acontecimentos recentes
apontam para uma séria piora do quadro. O exercício racional da tolerância
ficou prejudicado com a crescente exacerbação de uma dimensão emocional
absolutista, manifestada em posturas mentais de controle e subjugação. A
sugestiva batalha do bem contra o mal está sendo levada ao extremo do tudo ou
nada.
Mas, e a política? Porque esse relativo
silêncio durante tantos anos? Haveria algum tabu que eu desconhecia? Era
simples desinteresse pelo assunto? Aquilo sempre me intrigou, sem, no entanto
ter conseguido desvendar totalmente aquele mistério. Entendo que aquelas
perguntas eram fruto da vivência de um único indivíduo. Há, certamente,
entendimento distorcido pela parcialidade da experiência pessoal. Ainda assim,
política dizendo respeito à organização das condições de convivência entre
pessoas diferentes, em nome do bem estar coletivo, parecia-me que aquele
assunto deveria surgir com certa frequência. Espera-se, na minha concepção,
debate popular, forma saudável de vigilância dos atos perpetrados pelos
representantes formais. Ao silenciar, dá-se espaço para que políticos, movidos
por interesses egoístas típicos das dimensões mentais e emocionais, consigam
tramar tranquilamente o que bem quiserem e, pelo visto, assim fizeram durante
longo período. A política isolou-se em Brasília, virou profissão, com alto grau
de corporativismo. Lá, sofisticaram trâmites e processos a ponto de deixá-los
incompreensíveis para a maioria em uma manjada estratégia de reserva de
mercado. Os tempos de internet mudaram drasticamente as perspectivas, não
somente no Brasil, mas no mundo. Afinal não há nada oculto que, um dia, não
seja revelado. A internet simplesmente forneceu os meios que permitiram a
multiplicação de revelações a ponto de gerar nível suficiente de inconformismo
para, num momento impulsivo carregado de emoções, descer na rua e gritar
“chega!”.
Assim, pode-se dizer que o adágio foi
desmentido de vez. Até a política passou a ocupar espaço nos relacionamentos
sociais. E que espaço! O Brasil entrou em estado de choque, a ponto de alguns
anunciarem uma guerra civil a caminho. De repente, certos Brasileiros
emprestaram padrões de torcida para aplica-los à política. O “nós contra eles”
passou a vigorar. Muitos sentiram-se impelidos a anunciar as 4 verdades que o
outro precisava ouvir, numa atitude que mais releva dos padrões religiosos já
comentados. A sociedade brasileira, quando finalmente expressou suas
frustrações com as estruturas políticas de exercício do poder, o fez usando o
viés emocional, em um fenômeno desenfreado, impactante e eletrizante. Se
olharmos sob o prisma do modelo de Lewis, não podia ser de outra forma. O
adágio já tinha advertido...
O contexto político atual é de caos.
Batalhas maquiavélicas sucedem-se em ritmo frenético, tomando o país de refém
com o único intuito de satisfazer interesses repetidamente infelizes. Enquanto
isso, a população sofre, frustrada, necessitada e dividida.
Invejo a liberdade brasileira no quesito
“expressão de emoções” no dia a dia das relações. Poder expressar emoções sem
ser automaticamente taxado de fraco, incapaz ou louco é, no meu ver, motivo de
admiração mais do que de crítica. Poder “fazer uma cena” e ser perdoado, com o
evento rapidamente relegado ao porão do esquecimento, aquilo é um luxo!
Ainda assim, sabemos, emoções são
facilmente manipuláveis. As
propagandas usam ganchos emocionais há décadas incentivando o consumo por
impulso. Muitos políticos não fazem nada senão usar figuras de retórica para
tocar os corações ou tripas e, assim, influenciar as mentes ditas racionais. Os
bons marqueteiros políticos, claro, destacam-se quando dominam aquelas
ferramentas. Até determinados líderes religiosos usam tais recursos para atrair
e manter fieis. A mente racional é momentaneamente anestesiada, o tempo
necessário para atingir o objetivo almejado. Não por acaso, o apelo emocional
está em todo lugar, estampado, incentivado, usado para toda finalidade, das
mais nobres às mais questionáveis. Retomando o modelo de Lewis, no Brasil tais
apelos tendem, portanto, a gerar impactos significativos, pela predisposição do
público local.
Os recentes eventos demonstraram, mais uma
vez, como emoções podem ser usadas para gerar movimentos de multidão,
cristalizando-os. Quando o racional volta a dominar, o fato já foi consumado.
Para novas reivindicações, necessita-se nova onda emocional que possibilite a
geração de novo ciclo catalisador. Comitivas especializadas, de todas as
tendências, são financiadas para iniciar e tentar manter esses ciclos. A crise
generalizada, pela insegurança que gera, ajuda na multiplicação desses ciclos.
O emocional fica ainda mais exacerbado e sugestionável quando a percepção sobre
o futuro é negativa. Esta é a grande dimensão maquiavélica das atuais batalhas
entre partidos.
Gosto de pensar que se a emoção pode ser
usada para dividir, então pode ser usada para unir. Da mesma forma, há
ferramentas de retórica, histórias e imagens que despertam a compaixão e
solidariedade, outros aspectos “multi-ativos” enaltados no modelo de Lewis,
portanto presentes no inconsciente coletivo brasileiro. Assim, quando
confrontada à eventos traumáticos diversos, a população demonstra capacidade de
organização rápida para questionar, prestar socorro, encaminhar doações que
costumam chegar em grandes volumes. Incentivando a emoção certa, a ação
solidária impõe-se naturalmente. E naquele instante, constrói-se, juntos.
Todavia, até onde consigo entender, só com
a dimensão racional pode-se assegurar sustentabilidade no tempo ao impulso
emocional e aquela é mais difícil de ser desencadeada. Ajuda, no entanto, a
explicar a pouca durabilidade dos movimentos organizados na base da manipulação
emocional. A razão pede conversa, troca aberta de opiniões e pontos de vista,
concessões e muitas negociações. A atividade política saudável é fruto de um
equilíbrio delicado entre o ímpeto emocional criador e a análise racional, na
hora da implementação. Nada de novo acontecerá enquanto persistir a prática da
manipulação ou recuperação para benefício próprio ou partidário, qualquer que
seja. A política que, em sua essência, pede cooperação, virou competição.
Possui no “enganar” seu principal pilar, em uma tendência que lembra a teatrocracia,
forma pervertida da democracia, descrita por Platão há mais de dois milénios.
Os milênios passaram, os hábitos parecem ter ficado.
O processo em curso não é exclusividade
brasileira. As estruturas tradicionais de poder chegaram, em numerosos países,
a insustentáveis limites, com suas repetidas manipulações, movidas por
interesses particulares. Somente uma nova consciência cidadã conseguirá
inventar uma nova fórmula de prática política democrática. O trabalho de
conscientização começa em cada um para então surgir no coletivo, seguindo o
precioso ensinamento: “se quiser mudar mundo, mude a si mesmo”.
Consequentemente, assim espero, saberemos escolher sabiamente os líderes que
administrarão aquela nova estrutura de exercício do poder. Haja emoções
criadoras! E muita razão para implementar...
Philippe
H Gidon