quarta-feira, 22 de junho de 2016

Toque de Perspectivas

               
         
      Ao longo de toda a vida, constantemente nos são designados – e também escolhemos – diversos papéis e atribuições, e nos encaixamos em diferentes categorias. Filhos, estudantes, colegas, torcedores de um time esportivo, profissionais, cônjuges, vizinhos, filiados a um partido político, pais, amigos, aposentados, seguidores de uma religião ou de uma corrente filosófica, fãs, ídolos, e por aí vai. Alguns desses papéis são permanentes, outros mudam de vez em quando, e ainda existem os que são trocados a todo instante. Gostamos e temos necessidade de categorizar as coisas e as pessoas conforme suas características, seja para unir ou para separar.
Às vezes estamos tão acostumados a pensar de determinada maneira que temos dificuldade em imaginar como seria estar em outra pele, em reconhecer as opiniões alheias. A alteridade pode parecer demasiado estranha, até perigosa. Com frequência ficamos engessados numa perspectiva qualquer.
Uma parábola indiana relativamente famosa, com várias versões semelhantes, fala de um grupo de cegos que entram em contato com um elefante pela primeira vez, sendo que cada pessoa toca apenas em uma parte do animal, comparando suas impressões uns com os outros depois. Assim, o sujeito que pega na tromba do elefante diz que o bicho parece uma cobra; o que toca na perna garante que está diante de um pilar; e o que alcança a orelha comenta que o animal se trata de algo como um grande leque. Não há consenso entre eles, e mal sabem que sua compreensão é incompleta. Embora cada um perceba uma característica verdadeira do paquiderme, nenhum consegue abarcar o todo. Pode-se, então, inferir que não se deve julgar um objeto, pessoa ou situação apenas com base em partes e fragmentos, e que algumas verdades são bastante relativas.
Outra curiosidade vinda do oriente encontra-se no modo como a língua hebraica trata a perspectiva do passado e do futuro. Enquanto nas culturas ocidentais geralmente se considera que o passado está atrás de nós e o futuro vem vindo à nossa frente, no hebraico a palavra correspondente a “passado” também significa “à frente” (ou seja, pode-se contemplar o que passou), e o termo correspondente a “futuro” também pode significar “atrás” (pois não se consegue ver, é desconhecido). Esse olhar diferente nos convida a prestar bastante atenção à nossa história.
Deixando um pouco as elucubrações sobre espaços e tempos, passemos a abordar mais diretamente o fértil campo das relações humanas.  É interessante como, por vezes, a mudança de perspectiva, ao invés de favorecer alterações de comportamento, perpetua situações cíclicas perniciosas. Temos notícias de escravos que, após libertos, tornaram-se senhores escravagistas; indivíduos pobres que, depois de enriquecerem, passaram a humilhar outros sadicamente; cidadãos comuns que, uma vez revestidos de autoridade, começaram a cometer abusos de poder. Muitos dos que alcançam posições mais cômodas parecem esquecer que já foram sofredores (ou, quem sabe, justamente por lembrarem até demais, sem a devida elaboração, é que se tornam agentes de mazelas, fazendo jus àquela brincadeira do “desconta lá”). É de admirar a postura do condutor de automóvel que frequentemente reclama dos pedestres, porém, quando ele mesmo está transitando a pé, enche a boca para amaldiçoar os motoristas.
Nesta época de nervos à flor da pele, há quem se aferre demais a uma parte do elefante e há quem nem suporte tocá-lo. Parece bastante difícil exercitar a tolerância com outras perspectivas, mesmo quando o outro nos tem muito a ensinar. Como dizia o padre Antônio Vieira, “o verdadeiro saber é de saber reconhecer a verdade, ainda que seja filha de outros olhos ou de outro entendimento, e não se cegar com o próprio”.

domingo, 12 de junho de 2016

Política e emoções: a insustentável tentação da manipulação

Fonte: http://www.crossculture.com/latest-news/the-lewis-model-dimensions-of-behaviour/

(Muito já foi escrito, falado e gritado sobre os transtornos recentes vividos no seio da sociedade brasileira. As mídias e redes sociais andam repletas de informações, opiniões, análises, acusações e advertências. O que eu, um estrangeiro, mesmo sendo um convidado de longa data naquela casa gigante pela própria natureza, poderia comentar que já não tenha sido amplamente apresentado, pesquisado e comparado? Antes de tudo, teria eu esse direito? E, ainda que concedido o direito de opinar, seriam minhas impressões e percepções, de alguma forma, úteis? Não sei. Diante tantas incertezas, devo confessar meu traque ao estrear nesse espaço. Não há pretensão em cobrir o assunto anunciado no título, longe disso. Trata-se de expor algumas considerações pessoais, portanto, parciais e sujeitas à críticas. O uso equivocado da emoção em política constitui o foco do presente texto, sob o prisma de um modelo acadêmico proposto por Lewis.)

Segundo um tradicional adágio brasileiro, “futebol, religião e política não se discutem”. A sabedoria popular teria portanto identificado uma característica comum àquelas atividades, sujeitas a posicionamentos que pouco incentivariam um diálogo aberto e racional. O risco de desentendimento sem perspectiva razoável de se chegar a um resultado aceitável para as partes, teria levado a sociedade brasileira a estabelecer uma lista informal de assuntos não desejáveis em rodas de conversas sociais. Pelo menos assim foi meu entendimento a respeito do referido adágio quando cheguei por aqui.
Se olharmos padrões de comportamento em relacionamentos, sabemos, mesmo intuitivamente, que duas grandes dimensões costumam reger nossa conduta em sociedade, a emoção e a razão. As dinâmicas de funcionamento daquelas duas dimensões são ao mesmo tempo distintas e intimamente ligadas, uma podendo desencadear pensamentos, fenômenos ou sensações na outra, em processo constante de retroalimentação, que pouco controlamos. Somos, em regra geral, reféns de nós mesmos. Mas aquelas dimensões são diferentes em seus impactos. Farei aqui considerações pessoais nada científicas, resultantes de observações, leituras e conversas. A emoção invade o corpo e consegue teleguiar nossos reflexos comportamentais em milissegundos. Tanta velocidade nos incapacita, muitas vezes, de usar com eficácia a dimensão racional para conter determinados padrões emocionais que gostaríamos de mudar, ou, ao menos, controlar. Vivemos assim, em meio a uma dança incessante com passos indo do emocional para o racional e vice versa. O racional gostaria de controlar e pode até ter a ilusão de que controla. Mas o emocional possui uma força impactante tão repentina e invasora, que este, regularmente, vem nos lembrar quem de fato manda naquela birosca chamada corpo.
Li recentemente relatos de estudos na área de psicologia indicando que agimos de forma inconsciente em pelo menos 90% de nosso tempo de vigília, ou seja, quando acordados. Pior, aquela inconsciência é tanto da dimensão racional, em suas várias obsessões incluindo posse e controle, quanto da dimensão emocional, em sua capacidade para nos desequilibrar, seja em direção à euforia, seja em direção aos vales profundos da insegurança e frustração. Resumindo, seríamos máquinas condicionadas por desejos e pensamentos em constante movimento, entrando frequentemente em contradição, deixando-nos vulneráveis a qualquer evento que poderá desencadear efeitos desgovernados nas duas retro citadas dimensões.
Cada um possui uma formatação única nas condições de convivência destas duas vertentes de nossa personalidade. Mas há também uma dimensão coletiva quanto ao padrão de formatação. O adágio serve aqui de testemunha. Há até estudos a respeito. Um deles foi desenvolvido por Richard Lewis nos anos 90 sobre interferências culturais (cross culture) em negociações internacionais. Após anos de pesquisa de campo nos cinco continentes, Lewis elaborou três grandes categorias de comportamento que deveriam permitir classificar sociedades em determinados padrões. A foto encabeçando o texto oferece uma visualização, desenvolvida pelo próprio Lewis, da repartição dos países entre aqueles padrões. As três categorias são o “linear-ativo”, o “multi-ativo” e o “reativo”. Muitas sociedades demonstram aspectos em graus diferenciados de duas destas categorias, conforme vemos na foto. Mas algumas são avaliadas como essencialmente pertencentes a uma única categoria. O Brasil está no seleto time dos campeões mundiais na categoria denominada por ele de “multi-ativos”. Muito resumidamente, as principais características de tais sociedades dizem respeito ao uso intensivo, em suas relações, quaisquer que sejam, da emoção, retórica e linguagem corporal. Tenderiam à dar importância à religião e laços familiares, demonstrariam compaixão e sensibilidade comunitária, mas também certa volatilidade e grau de desconforto com autoridade e disciplina. Claramente, aquelas colocações são muito genéricas, tendências identificadas e postas à prova da generalização, portanto sujeitas a um reducionismo caricatural.
Feitas essas considerações, voltemos ao nosso adágio. Ao que tudo indica, a ciência corroborou o que a sabedoria popular já tinha apontado. Em um país onde a emoção tende a reinar no estabelecimento dos padrões de relacionamento, alguns assuntos passam a ser para lá de sensíveis. Ainda assim, não demorei muito para entender que aquele adágio, na verdade, só se aplicava mesmo à política. Futebol era assunto incontornável de conversas de mesa, apesar da recomendação popular. Até religião entrava no rol com certa frequência. Os dois temas envolvem valores absolutos, típicos da dimensão emocional, o “tudo ou nada”! No futebol, o espírito de time, a torcida, forja fortes e assumidamente irracionais padrões comportamentais do tipo “nós contra eles”, motivos de orgulho ou desespero em um passeio viciante de montanha russa a cada campeonato. Na religião, os valores absolutos pregados envolvem uma dimensão que eu não tinha até o momento comentado, propositalmente, a dimensão espiritual. Acredito que aquela dimensão seja, em sua essência, autônoma em relação às outras duas. Porque? Minha percepção é que a dimensão espiritual envolve conscientização. Ao desenvolver-se, “descondiciona” (perdoem minha liberdade com a língua portuguesa) padrões mentais e emocionais, permitindo trabalhar os 90% de inconsciência apontados no estudo de psicologia retro citado. O caminho para desenvolvimento da consciência só funciona, no meu ver, saindo do espiritual adentrando e descontruindo padrões das dimensões mentais e emocionais. Querer influenciar o espiritual a partir do mental ou emocional parece-me um tanto equivocado. Assim, esquemas religiosos que, em nome do indescritível, promovem supostos ensinamentos, movidos por interesses das dimensões mentais e emocionais que nada têm a ver com a dimensão espiritual, distorcem ou até destroem qualquer processo saudável e sustentável de conscientização. Interessante notar que, apesar do conteúdo fortemente simbólico, a religião ainda assim conseguia-se gerar conversas civilizadas em rodas de amigos. Valores, por mais absolutos que sejam, conseguiam ser relativizados e concessões aceitas em nome do bem estar coletivo. Os acontecimentos recentes apontam para uma séria piora do quadro. O exercício racional da tolerância ficou prejudicado com a crescente exacerbação de uma dimensão emocional absolutista, manifestada em posturas mentais de controle e subjugação. A sugestiva batalha do bem contra o mal está sendo levada ao extremo do tudo ou nada.
Mas, e a política? Porque esse relativo silêncio durante tantos anos? Haveria algum tabu que eu desconhecia? Era simples desinteresse pelo assunto? Aquilo sempre me intrigou, sem, no entanto ter conseguido desvendar totalmente aquele mistério. Entendo que aquelas perguntas eram fruto da vivência de um único indivíduo. Há, certamente, entendimento distorcido pela parcialidade da experiência pessoal. Ainda assim, política dizendo respeito à organização das condições de convivência entre pessoas diferentes, em nome do bem estar coletivo, parecia-me que aquele assunto deveria surgir com certa frequência. Espera-se, na minha concepção, debate popular, forma saudável de vigilância dos atos perpetrados pelos representantes formais. Ao silenciar, dá-se espaço para que políticos, movidos por interesses egoístas típicos das dimensões mentais e emocionais, consigam tramar tranquilamente o que bem quiserem e, pelo visto, assim fizeram durante longo período. A política isolou-se em Brasília, virou profissão, com alto grau de corporativismo. Lá, sofisticaram trâmites e processos a ponto de deixá-los incompreensíveis para a maioria em uma manjada estratégia de reserva de mercado. Os tempos de internet mudaram drasticamente as perspectivas, não somente no Brasil, mas no mundo. Afinal não há nada oculto que, um dia, não seja revelado. A internet simplesmente forneceu os meios que permitiram a multiplicação de revelações a ponto de gerar nível suficiente de inconformismo para, num momento impulsivo carregado de emoções, descer na rua e gritar “chega!”.
Assim, pode-se dizer que o adágio foi desmentido de vez. Até a política passou a ocupar espaço nos relacionamentos sociais. E que espaço! O Brasil entrou em estado de choque, a ponto de alguns anunciarem uma guerra civil a caminho. De repente, certos Brasileiros emprestaram padrões de torcida para aplica-los à política. O “nós contra eles” passou a vigorar. Muitos sentiram-se impelidos a anunciar as 4 verdades que o outro precisava ouvir, numa atitude que mais releva dos padrões religiosos já comentados. A sociedade brasileira, quando finalmente expressou suas frustrações com as estruturas políticas de exercício do poder, o fez usando o viés emocional, em um fenômeno desenfreado, impactante e eletrizante. Se olharmos sob o prisma do modelo de Lewis, não podia ser de outra forma. O adágio já tinha advertido...
O contexto político atual é de caos. Batalhas maquiavélicas sucedem-se em ritmo frenético, tomando o país de refém com o único intuito de satisfazer interesses repetidamente infelizes. Enquanto isso, a população sofre, frustrada, necessitada e dividida.
Invejo a liberdade brasileira no quesito “expressão de emoções” no dia a dia das relações. Poder expressar emoções sem ser automaticamente taxado de fraco, incapaz ou louco é, no meu ver, motivo de admiração mais do que de crítica. Poder “fazer uma cena” e ser perdoado, com o evento rapidamente relegado ao porão do esquecimento, aquilo é um luxo!
Ainda assim, sabemos, emoções são facilmente manipuláveis. As propagandas usam ganchos emocionais há décadas incentivando o consumo por impulso. Muitos políticos não fazem nada senão usar figuras de retórica para tocar os corações ou tripas e, assim, influenciar as mentes ditas racionais. Os bons marqueteiros políticos, claro, destacam-se quando dominam aquelas ferramentas. Até determinados líderes religiosos usam tais recursos para atrair e manter fieis. A mente racional é momentaneamente anestesiada, o tempo necessário para atingir o objetivo almejado. Não por acaso, o apelo emocional está em todo lugar, estampado, incentivado, usado para toda finalidade, das mais nobres às mais questionáveis. Retomando o modelo de Lewis, no Brasil tais apelos tendem, portanto, a gerar impactos significativos, pela predisposição do público local.
Os recentes eventos demonstraram, mais uma vez, como emoções podem ser usadas para gerar movimentos de multidão, cristalizando-os. Quando o racional volta a dominar, o fato já foi consumado. Para novas reivindicações, necessita-se nova onda emocional que possibilite a geração de novo ciclo catalisador. Comitivas especializadas, de todas as tendências, são financiadas para iniciar e tentar manter esses ciclos. A crise generalizada, pela insegurança que gera, ajuda na multiplicação desses ciclos. O emocional fica ainda mais exacerbado e sugestionável quando a percepção sobre o futuro é negativa. Esta é a grande dimensão maquiavélica das atuais batalhas entre partidos.
Gosto de pensar que se a emoção pode ser usada para dividir, então pode ser usada para unir. Da mesma forma, há ferramentas de retórica, histórias e imagens que despertam a compaixão e solidariedade, outros aspectos “multi-ativos” enaltados no modelo de Lewis, portanto presentes no inconsciente coletivo brasileiro. Assim, quando confrontada à eventos traumáticos diversos, a população demonstra capacidade de organização rápida para questionar, prestar socorro, encaminhar doações que costumam chegar em grandes volumes. Incentivando a emoção certa, a ação solidária impõe-se naturalmente. E naquele instante, constrói-se, juntos.
Todavia, até onde consigo entender, só com a dimensão racional pode-se assegurar sustentabilidade no tempo ao impulso emocional e aquela é mais difícil de ser desencadeada. Ajuda, no entanto, a explicar a pouca durabilidade dos movimentos organizados na base da manipulação emocional. A razão pede conversa, troca aberta de opiniões e pontos de vista, concessões e muitas negociações. A atividade política saudável é fruto de um equilíbrio delicado entre o ímpeto emocional criador e a análise racional, na hora da implementação. Nada de novo acontecerá enquanto persistir a prática da manipulação ou recuperação para benefício próprio ou partidário, qualquer que seja. A política que, em sua essência, pede cooperação, virou competição. Possui no “enganar” seu principal pilar, em uma tendência que lembra a teatrocracia, forma pervertida da democracia, descrita por Platão há mais de dois milénios. Os milênios passaram, os hábitos parecem ter ficado.
O processo em curso não é exclusividade brasileira. As estruturas tradicionais de poder chegaram, em numerosos países, a insustentáveis limites, com suas repetidas manipulações, movidas por interesses particulares. Somente uma nova consciência cidadã conseguirá inventar uma nova fórmula de prática política democrática. O trabalho de conscientização começa em cada um para então surgir no coletivo, seguindo o precioso ensinamento: “se quiser mudar mundo, mude a si mesmo”. Consequentemente, assim espero, saberemos escolher sabiamente os líderes que administrarão aquela nova estrutura de exercício do poder. Haja emoções criadoras! E muita razão para implementar...

Philippe H Gidon

quarta-feira, 1 de junho de 2016

Desigualdade, individualismo e violência no Brasil



Um primeiro aspecto considerado relevante para compreender o fenômeno das violências no Brasil se relaciona com o nosso modelo de sociedade, altamente desigual e excludente na sua forma de organização e distribuição dos bens culturais. Uma característica que muito contribuiu para a formação desse quadro social se relaciona com a presença da escravidão no Brasil até final do século XIX. Essa prática ajudou a naturalizar a desigualdade entre os indivíduos. Na legislação Colonial e Imperial, por exemplo, diante da Lei Civil o escravo era, ao mesmo tempo, coisa e pessoa, embora estivesse privado de todos os seus direitos civis. Por outro lado, diante da Lei Penal, o escravo sujeito ativo ou agente do crime era considerado pessoa e não coisa, ou seja, respondia plenamente pelos seus atos, sendo que a condição de escravo era considerada um agravante (WOLKMER, 2008).
Com a abolição, embora os indivíduos de pele negra tenham se tornado iguais aos de pele branca diante da lei, na prática a discriminação continuou, inclusive com respaldo da antropologia criminal emergente. O médico maranhense Nina Rodrigues (1862-1906) foi um importante divulgador das ideias racistas no Brasil, postulando uma inferioridade dos negros e mulatos em relação aos brancos. Rodrigues (1957) acreditava que os “não brancos” possuíam uma tendência natural a degenerescência e ao crime, defendendo, inclusive a importância de uma legislação especial para essas “raças”.
Mesmo com o final da escravidão e da Monarquia, o modelo de República  constituída no Brasil não tinha como fundamento um projeto social que valorizasse os interesses coletivos. Muito pelo contrário, a nossa República se desenvolveu marcada pela desigualdade, onde os ideais de cidadania nunca se fortaleceram. Assim, o nosso Estado se constituiu subordinado a interesses de determinados grupos ou famílias e não a partir de um pacto social baseado em regras formalmente definidas e aceitas por todos. A coisa pública é, nesse modelo, percebida como privada, pois não há uma instância universal legitimada na origem do sistema político e administrativo - o que existe são sempre núcleos locais de poder patrimonialista no sentido elaborado por Faoro (1989).
Desenvolve-se, assim, uma elite parasitária do poder que manteria o padrão de gestão tradicional e patrimonial decorrente do latifúndio patriarcal. Esse modelo sobrevive em diversas roupagens até a atualidade, fazendo com que os avanços sociais sejam muito lentos e possibilitando enorme concentração de riquezas para poucos e pobreza extrema para muitos. Um projeto excludente e desigual nas ofertas de acesso aos bens culturais. O pobre no Brasil é, antes de qualquer coisa, alguém a que fora negado o acesso às condições básicas de vida, como escolarização e salários dignos. Uma pobreza produzida pela desigualdade na distribuição da renda e das oportunidades de inclusão econômica e social.
Uma variável considerada central para a consolidação desse projeto desigual e injusto de sociedade foi o fortalecimento de ideologias individualistas. Esse processo se relacionou, particularmente, com a expansão da economia de mercado, as migrações, a industrialização, a introdução de novas tecnologias e o florescimento de uma cultura de massa. A disseminação de valores individualistas e a concomitante ampliação das possibilidades de escolha dos estilos de vida implicaram na diminuição do poder de coerção de instituições tradicionais, como família ou religião. Os indivíduos sentiram-se, então, mais “livres” para fazerem suas escolhas a partir dos seus próprios critérios “pessoais”. Velho (200) lembra que, mesmo considerando que a tensão social sempre existiu no Brasil, as interações eram mais pacíficas em função da lógica clientelista existente em uma sociedade tradicional. Os conflitos tendiam a ser resolvidos através de negociações, que impediam o confronto físico direto.
Embora o desenvolvimento do individualismo seja considerado condição necessária para o desenvolvimento da democracia, não é condição suficiente. Em determinadas sociedades como na americana, canadense ou na australiana, o movimento do individualismo aconteceu de forma a possibilitar a crença no contrato social como valor. A noção de que o poder político é consequência e expressão das relações entre indivíduos-cidadãos constitui a base dessas sociedades.

No Brasil, o individualismo constituído se acomodou a uma visão de mundo na qual a sociedade é percebida de forma desigual e hierarquizada. Foram criadas condições para o fortalecimento de uma cultura antidemocrática, marcada pela frágil valorização dos interesses coletivos. Assim, desenvolve-se um modelo de individualismo perverso, onde o outro é percebido como alguém inferior, que pode ser ignorado, explorado ou destruído de acordo com os interesses pessoais. Esse modelo de individualismo, embora não seja homogêneo, guardando as devidas particularidades e variações locais, é um traço fortemente presente em todo o tecido social. Constitui, ao mesmo tempo, causa e consequência de uma dinâmica belicosa, onde as violências são naturalizadas e até justificadas.