sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Atenção ao Ministério Público



Dito outra vez em algum dos meus pensamentos nos textos passados, repito, quando procuro entender a corrupção eu dou um enorme pulo mental do que é pensá-la como essência ou estado para me questionar o porquê da tal ruptura com os valores.

Analiso a corrupção como dois pratos em uma balança. De um lado, o prato que aparentemente pode ser classificado como os “benefícios”, que traz nele a tentação de ter todo esse dinheiro desviado e, no outro, o prato dos custos em que, pelo menos, deveria estar a probabilidade de punição e o montante da punição. Mas, e se esses dois apresentarem valor irrisório como muitas vezes acontece no nosso país, o que fazer?            

Bom, se tivéssemos as respostas as coisas não estariam do jeito que estão e esse momento de transição, que anseia momentos melhores no país, daria lugar apenas a um maduro objetivo de evoluirmos como sociedade em geral, mas como diz o velho ditado que todos nós já ouvimos pelo menos uma vez: “É melhor prevenir do que remediar”. E é bom ficarmos atentos à importância e ao papel do Ministério Público (MP) nesse combate.

Como uma rápida e simples forma de conceituar esse órgão, vos digo: Por ter a função de promover a realização da Justiça, o bem da sociedade e sair em defesa do estado democrático de direito, o MP, como fiscalizador, se fortificou desde a CF/88 de maneira independente dos outros poderes da República. E, já que o nosso sistema processual adere ao princípio da inércia em que há a necessidade da demanda, ou seja, a jurisdição só age quando provocada, o MP, para defender os interesses da democracia, população e interesses difusos, representará alguém (nós, como sociedade) que não tem como se “defender”.

Acredito, quase como uma crença, que muitas coisas no mundo tiveram, e continuam tendo, a oportunidade de serem evitadas. Um gancho leva o outro e não é só o ser vivo que se reproduz, os costumes e a cultura são passados às novas gerações num sopro tão rápido que só o exemplo diário e o ensinamento desde cedo que a corrupção deteriora o convício social, corrói a dignidade dos cidadãos e compromete a vida das gerações atuais e futuras fará a real diferença.

É evidente a importância de deixar de lado uma forma de esperar inerte. Gosto de pensar que uma esperança qualificada pela adesão de medidas que visam a diminuir o quadro da corrupção vem se fortificando na nossa população. O saldo é positivo quando partimos da teoria à prática para combater esse mal. Aquela história de que é melhor devolver aos índios esse mar de problemas que vem à tona há tantos anos no Brasil é história pra boi dormir.

Lembro-me das 10 medidas contra a corrupção que o MPF apresentou com o objetivo de dificultar o esquema dos corruptos, tanto no quesito da prevenção quanto na punibilidade dos atos. Em Novembro de 2016 esse projeto de lei foi levado à Câmara dos Deputados e das 10 apenas 4 foram aprovadas, e veja bem, ainda com alterações.

A iniciativa dessas medidas, que estavam fora de qualquer vínculo político-partidário, teve o apoio do povo brasileiro e foi assinada por mais de dois milhões de brasileiros na campanha que visava a levar ao Congresso Nacional. Não é pouca gente, né? Através da prevenção e de uma maneira firme para tentar trazer uma punição adequada para fechar as brechas da lei de impunidade vejo o Ministério Público se erguer com projeções futuras, afinal, o momento pede muito, mas talvez esteja na hora do povo credenciar mais confiança e ao mesmo tempo cobrar desse órgão tão importante, que é o MP para o país.

Então, veja bem, aqui vai um conselho: Se você, cidadão que tem conhecimento da existência de qualquer ato de corrupção, está munido de informações suficientes para que o Ministério Público tome uma medida concreta; você  pode fazer a sua denúncia através do http://www.mpf.mp.br/para-o-cidadao/sac. E, caso você queira ler mais sobre as 10 medidas contra a corrupção, pode acompanhar as notícias, tramitação no Congresso, como apoiar futuramente e outras informações no http://www.dezmedidas.mpf.mp.br

terça-feira, 1 de agosto de 2017

A quimera do Brasil sem jeito

Jeito: manobra engenhosa para converter o impossível em possível, o injusto em justo e o ilegal em legal [1]; ou ainda: processo brasileiro genuíno de resolver dificuldades apesar das regras, códigos e leis [2]. Em Brazil's Legal Culture: The Jeito Revisited (1984), Keith S. Rosenn [3] divide a instituição paralegal the jeito (jeitinho, para os íntimos) em cinco tipos de comportamento:
  1. Um membro do governo não cumpre uma obrigação legal por vantagem financeira ou de status.
  2. Um cidadão emprega subterfúgio para contornar uma obrigação legal que é sensível e justa.
  3. Um servidor público cumpre a sua obrigação legal de forma rápida somente em troca de vantagem financeira ou de status.
  4. Um cidadão contorna uma obrigação legal que é irrealista, injusta ou economicamente ineficiente.
  5. Um funcionário público desvia-se de sua obrigação por convicção de que a lei é irrealista, injusta ou economicamente ineficiente.
(Dedilhando o jeito em amplo espectro, tenho a impressão de que nossa tolerância para com os três primeiros tipos de jeito encurtou. Uma ampla revisão das obrigações legais dos brasileiros não eliminaria os dois últimos?)

O jeito como legado luso-romano

Para Rosenn, o jeitinho brasileiro nasce da atitude portuguesa diante da lei, que, por sua vez, foi fundamentalmente influenciada pela lei romana, pelo pluralismo legal e pelo catolicismo. Rosenn acrescenta à genese jeitosa o patrimonialismo, a confusão burocrática e a lentidão administrativa, além de heranças culturais, como: a elevada tolerância com a corrupção, falta de responsabilidade civil, a profunda desigualdade socioeconômicasentimentalismo e a vontade de chegar a um meio-termo.

Influência da lei romana
A legislação romana preocupava-se em construir um sistema harmonioso e universal de normas éticas de conduta. Sua influência sobre a lei portuguesa foi tal que as regras costumeiras foram substituídas por objetivos éticos e padrões de conduta a serem atingidos. O dualismo entre a lei e a vida prática persiste até hoje no Brasil.

Pluralismo legal
A lei romana admitia a personalidade das leis. A lei a ser aplicada sobre uma pessoa dependia mais do grupo a que pertencia do que do território em que habitava. Em Portugal medieval, reis, nobres, militares, membros do clero, professores e estudantes universitários, mercadores e membros de outras corporações eram geralmente isentos da jurisdição ordinária e sujeitos a leis e cortes especiais.

Catolicismo
Historicamente, lei e religião se misturavam na Península Ibérica. Com dogmas rígidos, intolerância moral, formalismo e lentidão em adaptar-se, o Catolicismo estimulou a prática do jeito.

Patrimonialismo
A forma como Portugal administrava o Brasil também contribuiu para o nosso jeitinho. Os administradores estavam ligados ao rei por lealdade pessoal ou lucro e não por dever oficial. Todas as taxas e tributos eram para rendimento pessoal do soberano e não para a nação. Uma posição administrativa na colônia era considerada um privilégio pessoal recebido ou comprado do rei, uma franquia para ganho privado.
Estranho ao patrimonialismo, o conceito torto de serviço público gerou baixa expectativa de que os oficiais do governo agissem de acordo com o interesse público. Assim, ao invés de serviços públicos, os cidadãos do Brasil Colônia buscavam favores pessoais do governo em troca de um agrado. O patrimonialismo também produziu um sistema legal imprevisível e personalista.

Confusão burocrática e lentidão administrativa
         Intermináveis demoras e entraves burocráticos produziram exagerada centralização de poder em Lisboa. A justiça era barganhada como qualquer mercadoria. Judicializar questões era oneroso, consumia tempo e papelada. Além disso, as decisões dos magistrados nunca eram a palavra final, já que, em última instância, cabia recurso aos humores do rei.

Elevada tolerância com a corrupção
Diferente da coroa espanhola, que dispunha de civilizações indígenas autocráticas facilitadoras do controle, Portugal não tinha como controlar as terras de seu imenso império. A coroa portuguesa também não estava disposta a investir na infraestrutura necessária para garantir o cumprimento da lei além-mar. Dando amplos poderes juridicionais aos brasileiros, Portugal enfrentou dificuldade em reafirmar autoridade sobre os latifundiários. Os coronéis "praticavam" a justiça e o descumprimento das leis era institucionalizado.
As políticas mercantilistas e a taxação pesada incentivaram a corrupção. Evasão de impostos e contrabando tornou-se meio de vida, não só no Brasil, mas também em Portugal. Para completar, Portugal punia criminosos com o exílio para o Brasil, que virou uma espécie de campo de despejo de pessoas de pouco respeito às leis. Como sabemos, poucos colonos vieram ao Brasil com intenção de povoamento. A ideia era ceifar riquezas e retornar o quanto antes a Portugal.
Em flagrante tolerância à corrupção, leis e decretos eram frequentemente ajustados a casos individuais. Nem as leis regulando a conduta de magistrados eram observadas. Os magistrados eram proibidos de se casar e fazer negócios com brasileiros. Postos judiciais não podiam ser ocupados por brasileiros, o que frequentemente também era violado.

Falta de responsabilidade cívica
Para Rosenn, vem dos portugueses o fraco senso de lealdade e obrigação para com a sociedade e o forte senso de lealdade e obrigação para com a família e os amigos. Rosenn cita Marcus Cheke: “o português é gentil com cinco categorias de pessoas: sua família, seus amigos, os amigos de sua família, os amigos dos seus amigos e, por último, para com o pedinte no seu caminho. Para com outros concidadãos, ele reconhece pouca obrigação”. Como aplicar a lei a todos com a preferência acima de tudo? O resultado conhecemos: “para os amigos tudo e para os inimigos a lei”.

Profunda desigualdade socioeconômica
A desigualdade judicial acompanha a desigualdade socioeconômica. A despeito da retórica da igualdade, classe social e as conexões pessoais até hoje interferem na aplicação da lei.

Sentimentalismo
O sentimentalismo nacional tende a afrouxar o rigor legal nas múltiplas instâncias do jeito. Entre ajudar alguém de quem se tem pena e respeitar a lei, o brasileiro frequentemente ignora a lei. O “coitado” é alguém com quem criar laços de amizade e, uma vez estabelecidos tais laços, a obrigação pessoal impõe-se sobre a norma legal impessoal e abstrata.

Vontade de chegar a um meio-termo
Temos inegável talento para o compromisso. Rosenn ressalta que a história brasileira é repleta de exemplos de crises superadas por bom-senso e acordo ao invés da aderência estrita à lei ou à doutrina filosófica abstrata.
A prática brasileira de reinterpretar as leis segundo o bom senso tem um ancestral espiritual na Lei da Boa Razão (1769), que encorajava os juízes e advogados a considerar senso comum, costume, legislação comparativa e o espírito da lei como base de decisão. Por bom senso comum entendia-se “de acordo com a lei natural, com os ideais éticos romanos e as práticas de nações cristãs”, uma espécie de precursor legal do jeito.

Em um esforço sobre-humano para deixar o sentimentalismo de lado, repousemos o que nos fizeram na memória. Sigamos, utópicos, rumo à passarela do meio-termo exato entre a malemolência e a rigidez. No horizonte, dúbio de tão tênue, lacrimeja a esperança: tirando o jeito, finda-se a quimera do Brasil sem jeito.


[1] C. Morazé. Le Trois âges du Brésil. (1954)
[2] A. Guerreiro Ramos. Administração e estratégia do desenvolvimento. (1966)
[3] Keith S. Rosenn. Brazil's Legal Culture: The Jeito Revisited. (1984)

sexta-feira, 28 de julho de 2017

À luz da corrupção



           Juntamente com a indignação popular diante da cada vez maior rede de benefícios mútuos e trocas de favores ilícitos entre empresários e políticos (e estes entre si), ouve-se muito a queixa de que tudo está um caos. O efeito percebido pode até ser caótico, porém estamos lidando com um sistema organizado, com seus próprios princípios.

A corrupção é inerente ao ser humano e parece ter suas raízes no narcisismo, que faz parte de sua constituição psíquica básica. No entanto, (acredita-se que) nem todo mundo se corrompe, dada a oportunidade para tal, apesar de se dizer que “todo mundo tem um preço”. Existe aí um jogo de forças no qual se encontram, de um lado, inveja, ganância, competitividade predatória, desprezo pelo próximo, exposição a risco; de outro, gratidão, generosidade, solidariedade, respeito ao próximo, medo de punição. Além desses, podem entrar também fatores ideológicos (na linha de “os fins justificam os meios”), e a racionalização frequentemente utilizada para tentar justificar os atos ilícitos: “todo mundo faz”.

Pode-se dizer que a corrupção é como uma semente que precisa de solo fértil para germinar. Nasce no coração do indivíduo, mas cresce e se desenvolve no solo das relações sociais e institucionais, regada por propinas, e não sob efeito de luz, mas de escuridão. Necessita de esforço por parte de uns, enquanto apenas exige que outros fechem os olhos. É um sistema que transcende os seres envolvidos, ainda que sustentado por eles. Serve aos interesses individuais de poucos, que se unem pelo que têm em comum, visando à manutenção do sistema, num círculo vicioso.

A manutenção ou a quebra desse círculo passa pela relação entre políticos, grandes empresários e população geral. Pode haver mudança de, da ou na relação. No primeiro caso, substituem-se os indivíduos. Considerando o povo e uma parcela dele, os empresários, como constantes, a classe que pode ser alterada é a dos políticos – normalmente, por meio de votação. Aí se impõem pelo menos duas questões: a confiabilidade do sistema de votação e, mesmo assegurando-se isso, a probabilidade de entrarem pessoas que de fato representem adequadamente os interesses populares. O segundo caso trata do modo relacional, das regras que normatizam as influências e trocas entre as instituições envolvidas; compreende fatores legislativos e judiciários. Essa é uma pedra angular, principalmente no contexto atual do país. No último caso, os atores em questão mudam de atitude – o que é considerado utópico, até ridículo.

Para haver mudança, é preciso primeiro haver apuração e reconhecimento dos erros. A postura mais comum dos acusados é negar participação em qualquer ilícito, sem o menor constrangimento, e por isso os corruptos são frequentemente taxados de “cínicos”. Curiosamente, esse termo, se usado em seu contexto original, jamais poderia referir-se a eles.   O cinismo era uma escola filosófica grega fundada por um discípulo de Sócrates. Eles pregavam uma filosofia prática, uma vida despojada de bens materiais e de amarras sociais, e buscavam o contato com a natureza e o aperfeiçoamento das virtudes morais.

Um desses filósofos, Diógenes (representado na pintura de Jacob Jordaens que ilustra este texto), tornou-se famoso pela maneira radical em que vivia suas convicções e pelas críticas ácidas dirigidas a outros filósofos, aos políticos e às normas sociais. Conta-se que Alexandre, o Grande, certa vez abordou Diógenes (que morava na rua, em um barril), oferecendo-lhe algo que desejasse. Diógenes teria pedido então que ele se afastasse um pouco, pois estava atrapalhando seu banho de sol. Em outra ocasião, o cínico saiu pelas ruas com uma lamparina acesa pela manhã. Quem zombasse dessa atitude, chamando-o de louco, deveria emudecer diante da resposta: “Estou procurando um homem honesto”.


Haverá uma “lamparina” que nos mostre em quem confiar? Haverá quem não se curve diante dos “Grandes” nem forje com eles alianças escusas? Nessa busca, a ênfase deve recair sobre a pessoa ou sobre a instituição? 

domingo, 25 de junho de 2017

Corrupção à brasileira

As mentes brasileiras mais jovens e/ou suscetíveis ao merchandising político-midiático, como aquelas pertencentes aos recém-chegados à Terra Brasilis, podem imaginar que a corrupção por aqui nunca esteve pior. Ledo engano: a corrupção é um dado cultural por estas terras e sua constituição como característica social é, também,  não linear. Além disso, uma breve investigação sobre a etimologia da palavra e a práxis nacional são reveladoras de uma constatação  repetida diversas vezes: o Brasil não é para iniciantes.

A corrupção é uma categoria de comportamento ético, embora a palavra possa ser usada de outras formas, como no sentido bíblico do “corrupção da carne”, por exemplo. Um dos significados de corrupção é apodrecimento, o que pode levar alguém a pensar: de quantas formas e maneiras o comportamento social brasileiro está podre? Ou, de quantas maneiras corruptas (e, portanto, podres) alguém pode se comportar, na vida social? Isso porque a utilização do termo pode se dar das mais variadas formas. Um aluno é corrupto quando utiliza de meios ilícitos para obter respostas num exame; um motorista que avança o semáforo vermelho ou pára indevidamente numa vaga de idosos? Corrupto. Um pai que frequenta prostíbulos, traindo a confiança de sua esposa e traz doenças venéreas para o leito familiar? Corrupto, também. Como se diz por estas terras, “vender o voto” durante as eleições, fraudar licitações e utilizar recursos públicos para benefício particular? Todas essas e muitas outras são exemplos de atos provenientes de mentes apodrecidas.

Se bem vistas as coisas, existem sinais muito claros de que o problema do apodrecimento social brasileiro possui origens bastante complexas. Se as normas (sociais, jurídicas, religiosas e assim por diante)  são modelos de controle social que vinculam as pessoas que a elas se submetem (voluntariamente, no caso das sociais e religiosas, e imperativamente,  no caso das jurídicas), o vínculo social mediado por essas normas é violado todas as vezes em que um ou mais indivíduos rompem ou corrompem o conteúdo normativo previamente aceito ou estabelecido pela sociedade. Isso não quer dizer que todas as regras sociais são justas, ou que todas sejam legítimas, posto que, analisando factualmente a produção de normas de conduta, sabe-se que elas são construtos sociais, isto é, fenômenos oriundos da cultura, da força ou consenso de determinados agrupamentos humanos. As consequências pelo não cumprimento dessas normas variam conforme as regras de sanção e da eficácia social que o agrupamento humano deposita em cada norma: uma sociedade que preserva seus costumes e considera o seu modelo normativo útil e necessário tende a preservar com mais vigor a aplicação das sanções (sociais, políticas e jurídicas) no caso de corrupção.

As peculiaridades da corrupção brasileira estão profundamente ligadas a vários fatores, dentre os quais se pode destacar os seguintes: (1) a violação de direitos humanos básicos,  como saneamento, devido processo legal, ampla defesa e contraditório, igualdade perante à lei e não-discriminação, isso sem ignorar o fato de que, nos meios de comunicação,  a população é constantemente ensinada que “os direitos humanos só protegem os criminosos”; (2) mais de 80% da população já nasce em condições de ilegalidade, sem poder de escolha, vez que não são proprietários das habitações ou terrenos que ocupam, não possuem certidão de nascimento, nem qualquer outro tipo de identificação – sendo esta uma das características mais marcantes do apodrecimento da cidadania brasileira; (3) a grande parte da população aceita e pratica a violência como uma forma de solução dos conflitos de interesses, com a fundamentada desculpa de que (4) o Estado é omisso em atuar para prevenir, solucionar e julgar os casos de choques entre os particulares, o que incentiva, de maneira indireta a (5) vingança privada como forma ilegal de justiça particular, em busca de segurança e defesa para a população; (6) a subserviência das classes intermediárias e subalternas ao poder dos grandes grupos econômicos que se beneficiam de um (7) sistema patrimonialista de capitalismo estatal  que beneficia apenas as grandes empresas controladas por burocratas e membros de partidos políticos e oligarquias regionais, que estrangulam os pequenos e médios empreendedores; (8) falta de controle efetivo, fiscalização e responsabilização pelos desvios de fundos públicos destinados às políticas públicas sociais elementares, além do (9) descaso das demais classes socioeconômicas com as 40 milhões de famílias  (não são pessoas, são famílias, formadas, geralmente, por mulheres e crianças) que vivem abaixo da linha da pobreza (menos de US$ 1,00 por dia), na mais absoluta miséria. Os itens 10 e sucessivos ficam por conta da imaginação do leitor.

Portanto, como se vê,  a corrupção não é um problema dos partidos políticos,  mas um mal social que se espalha em diversos setores e situações. Vem da família, se intensifica na escola, no trânsito e no trabalho. Corrupção é uma perspectiva de vida, vez que depende da obediência às regras e aos princípios elementares de uma boa convivência, decorrente do modelo sociocultural de cada civilização. Não sendo um privilégio brasileiro, encontra, aqui, as condições fáticas, jurídicas e políticas para se espalhar e infestar a sociedade como um parasita, um câncer ou coisa do gênero.

quarta-feira, 3 de maio de 2017

Memórias Afetivo-Musicais Volume 2

Matutando (Saudades d)o Brasil: 

Memórias Afetivo-Musicais Volume 2





Foi muito bom ser jovem um dia e musicalmente foi muito bom ser jovem em Fortaleza, Brasil em pleno anos 80. Como ficou estabelecido no primeiro esboço dessas saudades, essas memorias são minha maneira de matutar o Brasil, assim mesmo de longe, tanto no tempo quanto no espaço.

Os anos 80 trouxeram a explosão do rock nacional que na nossa casa chegou um dia com o estranhamento diante do “Você não soube me amar” de uma certa banda chamada Blitz – isso em algum dia de 1982. O que era isso? Não era samba, não era bossa-nova, não era MPB, não era forro ou baião. Era o começo do Rock em brasileiro – só que ainda não sabíamos que não seria apenas um ilha, era sim um continente. Eventualmente esse continente seria explorado revelando geografias complexas como Legião Urbana, Paralamas do Sucesso, e Titãs, algumas formações singulares como Ultraje a Rigor, RPM, Plebe Rude, e Nenhum de Nos, assim como regiões que ficaram entre o singular e o plural, como Kid Abelha, Barão Vermelho, Biquíni Cavadão, IRA! e Engenheiros do Hawaii – sendo essa classificação estritamente pessoal.

Entre a inesperada Blitz de 82 e a confluência do Rock nacional seriam alguns meses de espera em banho-maria, até que em 83 surge um tal de Paralamas do Sucesso com “Cinema Mudo” que incluía “Vidal e Sua Moto”, assim como “Química” – musica escrita por um rapaz de Brasília chamado Renato Russo. No ano seguinte chega Titãs estreando “Sonífera Ilha” – “não posso mais viver assim ao seu ladinho, por isso colo meu ouvido no radinho, de pilha...” seguido por Marvin, “Querem meu sangue”, e “Toda Cor”. Também em 84 o Paralamas lançaria seu segundo álbum que trouxe um desfile de sucessos raramente reunidos num só folego: “Óculos”, “Meu Erro”, “Fui Eu”, “Romance Ideal”, “Ska”, “Mensagem de Amor”, “Me Liga”, e “Assaltaram a gramatica” – e os jovens daquela época sabíamos de cor todas essas letras que fizeram a trilha sonora das nossas primeiras dores de amor.

Essa energia represada em 84 – com o estouro dessas duas bandas que marcariam nossa geração - desaguaria em janeiro de 85 com a primeira edição do Rock in Rio. Aquele evento marcou nossa geração mesmo naqueles que o viram das dunas do Ceara ou ouviram de um primo do primo que teve o privilegio de ir por ter passado no vestibular. Aquele primeiro Rock in Rio faria sim a passagem do bastão da geração Doces Bárbaros e Tropicália para os novos donos do palco da nossa geração. Ali se reuniriam o veteranos Gilberto Gil, Alceu Valença, Morais Moreira, e Elba Ramalho assim como aquela geração que nascia e embalava nossas vidas: os já citados Blitz e Paralamas, assim como a musa – cujo nome ainda não sabíamos – do Kid Abelha e os Aboboras Selvagens, e o Barão Vermelho com Cazuza.



Aquele ano de 1985 traria a estreia do fundamental Legião Urbana com alguns frutos que levariam tempo para amadurecer mas que já espantavam nossos ouvidos adolescentes como “Será” – “será que vamos conseguir vencer?”, “Por enquanto” – “está tudo assim tão diferente/se lembra quando a gente chegou um dia a acreditar/ que tudo era pra sempre/ sem saber, que o pra sempre, sempre acaba/ mas nada vai conseguir mudar, o que ficou/ quando penso em alguém só penso em você/ e ai então estamos bem”, “Geração Coca-Cola” – “somos os filhos da revolução”, “Ainda é cedo”; “uma menina me ensinou/quase tudo que eu sei”, e Soldados – “a gente não queria lutar”. O ano de 1985 seria também o ano do RPM – uma banda, para mim, de apenas um álbum – o genial “RPM ao vivo” que traria no ano seguinte os mesmos sucessos de estúdio reunindo num só sopro: “Revoluções por minuto”, “Alvorada Voraz”, “Olhar 43”, “A Cruz e A Espada”, e a ressureição da balada “London, London”, do Caetano Veloso – quantas aulas em cursinho de inglês não usaram essa musica para decifrar os tais “flying sources in the sky”!

E seria naquele mesmo ano de 1986 que o Legião e o Titãs consolidariam sua posição nos nossos ventrículos, tanto cerebrais como coronários, com o lançamento dos inesquecíveis “Dois” pelo Legião e “Cabeça Dinossauro” pelo Titãs.

É difícil dar a dimensão exata dessas duas obras-primas na cabeça de uma geração que nascera sob a ditadura, crescera com ídolos exilados, e vivia de uma dieta musical censurada. De repente chegava o Renato Russo, que já havia nos desafiado com Geração Coca-Cola, cantando obras primas como “Eduardo e Monica”, “Quase Sem Querer”, “Índios” e a maravilha que é “Tempo Perdido”. Ao mesmo tempo, surgia o Cabeça Dinossauro cantando – ou gritando – coisas que estavam entaladas na garganta de toda nossa geração com “Igreja” – “eu não gosto de padre, eu não gosto de Deus!”, “Policia” “dizem que ela existe para proteger, dizem que ela existe...” Bichos Escrotos “saiam dos lixos!” e “Família” “o choro do neném é estridente, assim não da para ver televisão” Com essa mesmo rapidez percebíamos que essas musicas que nos conquistavam não tocavam da mesma maneira nos ouvidos do nossos pais e ai descobrimos que não éramos, como cantava a Elis nos versos do conterrâneo Belchior, “como nossos pais”.  Éramos agora uma nova geração, uma nova estética, um novo som, uma nova oportunidade de fazer do Brasil o nosso sonho, ou de pelo menos sonhar um novo Brasil, democrático e plural. Um Brasil que se apoderava do Rock-and-roll e fazia bonito, em português.

Esse ano de 1986 foi o ano em que completei 15 anos e como aluno 157 do Colégio Militar de Fortaleza – nosso querido CMF – fazia parte de umas das trupes que dançavam valsas nos aniversários das mocas completando aqueles mesmos quinze anos. Depois da valsa rolava uma legião de titãs que incluía o próprios, assim como RPM, Kid Abelha, e Barão Vermelho – fora alguns sucessos avulsos como o Camisinha de Vênus – “Eu não matei Joana D’arc”, Joao Penca e os Miquinhos Amestrados “Lagrimas de Crocodilo”, Leo Jaime – “Sete Vampiras”, e Metro “Tudo Pode Mudar” e “Beat acelerado”. E o que acalentava nossos primeiros amores era justamente essa parada de sucessos apos a valsa vienense. Por essa época também a festa da padroeira de Jaguaruana, Nossa Senhora de Santana, era comemorada com bandas de fora, inclusive o famoso Grupo Alcano de Recife, que lembro tocando justamente a “Sonífera Ilha”, “Bete Balanço”, e “Pro Dia Nascer Feliz”.


Aqueles dias nasciam felizes. Só nos restava esperar que morressem felizes também. E assim fomos evoluindo com esses bardos, que cresceram conosco, o Legião inclusive traçando esse crescimento até mesmo com o fabuloso “Quatro Estacoes” que ensinou Camões a tantos da nossa geração – “o Amor é fogo que arde sem se ver/ É ferida que dói e não se sente”. Antes dos Quatro Estacoes, em 89, já haviam também desafiado nossa capacidade de memorização em 87 com o lançamento do LP contendo, além de “Angra dos Reis” e “Que Pais é esse”, a historia de Joao de Santos Cristo – nos 10 minutos de Faroeste Caboclo – que sabíamos sim, de cor. Assim o Legião foi traçando a nossa historia na sua ou a sua historia na nossa. Esse traço chegou ao fim com o álbum “A Tempestade” – o triste adeus com “Natalia” “Longe ao meu lado” “Via Láctea” “Aloha” “Esperando por Mim” “Quando Você Voltar” e o “Livro Dos Dias”. Essa marcação feita pelo Legião da nossas vidas chegaria ao ápice trágico naquela noite de 11 de outubro de 1996, quando o Jornal Nacional anunciava a morte de Renato Russo, e com ele um pedaço tristemente feliz e alegremente triste da nossas vidas. Já não éramos mais tão jovens.



sábado, 22 de abril de 2017

Marisqueiros Urbanos: Ensaio de Estética e Sobrevivência


Vou contar aqui um pouco da história de um personagem que também faz parte da sua história: o seu nome é Tomé.

Tomé não sabe ler nem escrever. A principal atividade que exerce é de “flanelinha” nas sinaleiras das vias urbanas. Contudo, o dinheiro que consegue ganhar com esta atividade é muito incerto. Algumas vezes chega a dez reais por dia, outras, o ganho é quase nada. Tomé afirma que é muito difícil trabalhar na rua hoje em função da enorme concorrência. Em todos os lugares que carros ficam parados, já existe alguém se anunciando como dono do ponto. O lugar que trabalha pertence a outro rapaz mais antigo na área. Contudo, o mesmo só aparece para trabalhar por volta das 16 horas. Tomé aproveita esta lacuna para fazer o seu horário. Trabalha entre 10 e 16 horas. Para sobreviver com estas oscilações do seu “faturamento”, abriu uma rede de outras opções. Se oferece como ajudante de pedreiro em alguma obra; é catador de lata de cerveja e refrigerante; limpa fossa; tem um mapeamento de vários restaurantes e instituições onde consegue obter alimento de graça ou mediante a troca de pequenos serviços, como lavar um quintal ou sanitário. Sabe também um conjunto de endereços de algumas famílias que se dedicam a prestar algum tipo de ajuda aos desfavorecidos. Um ponto que possibilita este trânsito pôr ambientes diversos é a imagem de “bom rapaz” que soube produzir de maneira muito hábil. Cuida do seu aspecto visual: está sempre limpo e com roupas lavadas. Conseguiu produzir um ar de credibilidade, que sabe veicular com maestria no seu jeito de vestir, olhar e falar.

Tomé transita por diferentes espaços. Os seus pertences ficam guardados em diferentes lugares, mudando em função de fatores conjunturais. Atualmente encontram-se guardados em uma árvore. Dorme também em diferentes lugares. Frequentemente na rua, quando costuma se dirigir para as marginais da Avenida Contorno, próximo à praia. Costuma dormir também em albergues públicos, na garagem de alguma casa de família ou, quando está com dinheiro “sobrando”, dorme em algum hotel barato.

O objetivo deste texto não é camuflar os efeitos catastróficos de uma política econômica perversa sobre uma grande parcela da nossa população, mas possibilitar uma reflexão sobre o sentido do processo de exclusão social daí decorrente. O contexto histórico e social do Brasil possibilitou a afirmação de um ambiente muito específico de relações de trabalho e de sobrevivência:  a rua. Enquanto espaço de desdobramentos de atividades econômicas, a rua é anterior à existência de qualquer espaço institucional outro.  Contudo, com o desenvolvimento do mundo industrial e a efetivação das relações de trabalho assalariado, as atividades desenvolvidas na rua passaram a ser vistas com desconfiança e restrições. A rua, como lugar próprio do livre comércio, tornou-se paraíso de toda gama de mercadorias e de serviços baratos e de qualidade duvidosa.  Dentro deste espaço, temos os contornos que definem a última fronteira entre estar dentro ou fora do sistema. Nos limites desta linha tênue é que se encontram os marisqueiros urbanos.

A palavra marisqueiro reporta ao mariscador, habitante beira mar, notabilizado pelo faro que desenvolveu para localizar seus mariscos. Os nossos marisqueiros são pessoas de origem indefinida, que não fazem parte de algum grupo social em especial. Podem vir de qualquer território. O que os define são as atividades que desenvolvem, caracterizadas, fundamentalmente, pela dependência de um tipo especial de faro para identificar boas oportunidades. Atuam nas franjas de algum espaço institucional ou na própria rua. Basta que seja possível lançar uma oferta e lá estão eles: seja para carregar algum objeto, “olhar” o carro, limpá-lo, tomar conta de qualquer coisa, empacotar algo, limpar, encher o garrafão de água, lavar, enterrar um bicho morto ou mesmo simplesmente mariscar uma esmola. Basta que exista uma possibilidade de anunciar um pedido ou algo a ser feito e alguém que se disponha a pagar por isto, que eles entrarão em cena. Ser marisqueiro define uma atitude diante dos fluxos e refluxos do mundo urbano. Esta atitude relaciona-se com a capacidade de se articular com estes ritmos da cidade e ser capaz de compor pequenos arranjos, que lhe possibilite extrair o que precisa para sobreviver.

Este lugar que os marisqueiros urbanos ocupam assinala também o lugar próprio onde se abrem as portas da marginalidade.  Estamos em uma zona de desenvolvimento de negatividades. Quem a ocupa candidata-se a virar criminoso. São verdadeiros canais de escoamento do “lixo humano”.  É a zona de descarga, habitadas pelos “desacreditados”, aqueles cujo o próximo passo só pode ser mesmo o envolvimento com o mundo do crime. Fica patente que a instituição desta zona de fronteira possui um papel decisivo na constituição de um espaço subjetivo, onde identidades são criadas. São zonas de construção de sentido.

O personagem Tomé mostra que é possível se apropriar deste espaço sem se deixar conduzir pela sua negatividade. Tomé é um especialista em estratégias de sobrevivência urbana. Sua vida exige uma constante capacidade de improvisar, de se articular, de abrir novas redes e criar novas saídas para antigos problemas. Um mariscador, que no toque firme do seu olhar preciso consegue ver lá onde se esconde o que procura. Um personagem, contudo, marcado por uma maldição social. Existe um texto pronto para contar a história de como sucumbiu ao mundo do crime. A sociedade o convida, a cada momento, para que ele ocupe este lugar, fazendo cumprir este destino perverso. Mas ele subverte a ordem e heroicamente resiste.

Ao criar zonas de descarga, quando o sujeito descartado é tido como um virtual candidato à criminoso, a sociedade mina as possibilidades destes espaços limítrofes possibilitarem o desenvolvimento de outras potencialidades. Estas regiões fronteiriças, lá onde se desdobram formas diferentes de vivenciar as relações de trabalho, constituem zonas de possibilidades que extrapolam em muito a mão única da criminalidade. São verdadeiros laboratórios sociais, onde pode emergir formas alternativas de estar no mundo. Portanto, importante desviar o olhar estigmatizante e considerar que os “flanelinhas” ou os “guardadores” de carro que aparecem nas ruas e nas calçadas, podem ser honestos trabalhadores. São vítimas do modelo econômico vigente, mas estão lutando para driblar as áridas condições de sobrevivência que lhe são impostas. São marisqueiros urbanos, especialistas em arte e sobrevivência.

quarta-feira, 12 de abril de 2017

​Liberação da venda de drogas: precisamos falar sobre isso!



No Brasil, morrem por ano 35.000 pessoas por ingerirem álcool. Sabe quantos morrem por usar cocaína? Trezentos! Sim, morrem 100 vezes mais pessoas por álcool do que por cocaína. Por coisas assim, tem crescido o número de defensores da venda legalizada de drogas.

Ser radical - seja de direita, seja de esquerda - pressupõe ignorar os fatos para defender uma ideia por paixão ou convicção. Defender a descriminalização das drogas é uma bandeira impopular e, costumeiramente, associada à extrema direita e à extrema esquerda. A extrema direita defende o direito individual das pessoas por suas próprias vidas, incluindo o direito a fazer mal a si próprio. A extrema esquerda defende o direito ao uso de substâncias por outros motivos, mas também o faz. É óbvio que drogas fazem mal. É óbvio que algumas fazem mais mal do que outras. Argumentos lógicos para defender algo como permitir que alguém use uma substância que poderá matá-la, no entanto, existem!

Talvez o principal motivo para se pensar em permitir a venda e consumo recreativo de susbtâncias psicotrópicas seja cultural: as pessoas no mundo inteiro buscam drogas para usar, e o fazem desde que o ser humano é ser humano. Essa falha autodestrutiva de caráter faz com que a demanda por drogas seja permanente, e a economia ensina: se há demanda, haverá oferta. Ponto. Não há discussão. São fatos. Há demanda? Se sim, haverá oferta!

Não seria arrogância do Brasil querer ter êxito em proibir a produção, venda e consumo de drogas aqui, no quinto país mais extenso do mundo, com maior dimensão de terras cultiváveis e com uma das maiores fronteiras com outros países do mundo, se em países como Suíça e Dinamarca, que, além de pequenos, são ricos e desenvolvidos, existe circulação de drogas ilícitas? Quanto custa essa guerra invencível do governo contra as drogas? Não seria melhor gastar essa fortuna com saúde e com educação? Qual a consequência de proibir, do ponto de vista comercial? Não seria uma forma de garantir o monopólio da venda para pessoas sem escrúpulos como Fernandinho Beira-Mar, que, após ser preso, foi substituído imediatamente por um dos traficantes de uma fila interminável de pessoas dispostas a tomar seu lugar? Dos presos no país, metade o são por questões de venda de drogas. Recente episódio na Indonésia chamou à atenção no Brasil: um brasileiro foi condenado à morte por estar vendendo drogas naquele país. O rigor da Indonésia contra a venda de drogas surte efeito? A resposta: está havendo aumento de consumo de drogas por lá! (http://ultimosegundo.ig.com.br/mundo/2015-01-21/mesmo-com-pena-de-morte-uso-de-drogas-na-indonesia-deve-crescer-45-em-2015.html)

No mundo, há opiniões e há fatos. São os estudos que os diferenciam. Dois grandes estudos sociológicos ocorreram no mundo de modo involuntário: 1- a separação da Alemanha em duas provou que socialismo é pior que capitalismo. 2- a proibição do álcool nos EUA no início do século XX provou que proibir um produto que possui grande demanda é uma medida inútil e prejudicial.

Não é falha de caráter defender a venda de drogas. Mesmo que muitos que o fazem sejam pessoas com ideias equivocadas sobre outros assuntos, a tese, em si, é perfeitamente lógica. Para embasar a opinião a respeito dos efeitos da proibição x regulamentação das doras, alguns tópicos são essenciais:

  1. Qual a mortalidade geral causada pelas drogas (em %)? Isso traz uma ideia de qual a chance de um usuário de uma droga x morrer por uso dessa mesma droga.
  2. A liberação de drogas (ou alguma delas) nos locais onde isso ocorreu gerou aumento, diminuição ou estagnação no número de usuários?
  3. Qual o custo da guerra às drogas em países sérios? Em algum país esta guerra está sendo vencida?
  4. Qual o mal pior: as drogas ou o tráfico de drogas? Quem mata mais: a cocaína, maconha, etc juntos ou as disputas decorrentes de suas vendas?

Número de mortes anuais por substâncias tóxicas:
Álcool: 34.573 / Cigarro: 4.625 / Substâncias psicoativas: 480 / Cocaina: 354 
Fonte: http://www.clicrbs.com.br/pdf/12985756.pdf

Um estudo científico sobre os riscos à saúde associado ao uso de drogas, incluindo o álcool e o tabaco, indicou que,  muitas drogas proibidas talvez sejam menos nocivas do que as drogas permitidas. Então por que proibir algumas e não outras? E, proibindo algumas apenas, qual o critério para a escolha de qual droga proibir? O álcool e o tabaco parecem ser mais nocivos do que a maconha, por exemplo. (https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4311234/). 

O Brasil é o segundo maior consumidor mundial de cocaína, com quase 6.000.000 de brasileiros já tendo experimentado essa droga (https://noticias.terra.com.br/brasil/estudo-aponta-brasil-como-segundo-maior-consumidor-de-cocaina-no-mundo,48b1dc840f0da310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html). Por ano, quantas pessoas morrem por ter usado cocaína? Dos milhões de usuários, morrem cerca de 350 por ano. Não são 350.000, mas 350 apenas. Além de representar um número de mortes modesto em relação ao total de mortes no Brasil, parte da causa dessas mortes se dá, muitas vezes, por a cocaína conter as mais diversas substâncias misturadas para aumentar o lucro dos vendedores. Isso ocorre até em locais mais desenvolvidos, como a Europa (https://www.publico.pt/destaque/jornal/mortalidade-associada-ao-consumo-de-cocaina-esta-a-aumentar-na-europa-20597087).

O número de mortes pelo uso de drogas no Brasil é pequeno. São números. Números são impessoais e não tem partido. Por outro lado, o número de homicídios no Brasil é assustador. A nível de comparação, enquanto no Brasil inteiro morrem em um ano 350 pessoas por usarem cocaína, naqueles poucos dias sem polícia no Espírito Santo, morreram mais de 150 pessoas apenas nequela estado. No Brasil inteiro, em 2014, foram 60.000 homicídios. (http://www.valor.com.br/brasil/4493134/brasil-lidera-em-numero-de-homicidios-no-mundo-diz-atlas-da-violencia). Maior número entre todos os países do mundo. Cerca de um terço desses homicídios ocorreu devido à briga entre vendedores de drogas (http://www.gazetadopovo.com.br/especiais/paz-tem-voz/droga-causa-77-dos-homicidios-9dgb4ldc3wfdvvkce6rztqtzi), ou seja, a venda ilegal de drogas matou cerca de 40.000 pessoas em um ano no Brasil.

Números de mortes por homicídios e por venda de drogas no Brasil:
Homicidios em 2014: 60.000 
Homicídios por tráfico num ano: 40.000 
Fontes: 
1- http://www.valor.com.br/brasil/4493134/brasil-lidera-em-numero-de-homicidios-no-mundo-diz-atlas-da-violencia 
2- http://www.gazetadopovo.com.br/especiais/paz-tem-voz/droga-causa-77-dos-homicidios-9dgb4ldc3wfdvvkce6rztqtzi

Para quem não entendeu: 1.000 pessoas no Brasil morrem por ano por usarem drogas, enquanto 40.000 pessoas morrem pela venda de drogas. A política de guerra às drogas objetiva evitar as 1.000 mortes de quem as consome, mas é inútil, ou talvez intensifique, as 40.000 mortes causadas por sua venda. Se maconha fosse vendida da mesma forma que os cigarros, haveria morte por tráfico de maconha? Isso é fácil de responder: morrem no Brasil 35.000 pessoas todo ano por serem usuárias de álcool. Quantas pessoas morrem por não terem pagado por sua cachaça? Será que o dono do Pão de Açúcar e o dono do Carrefour matam alguém para terem o monopólio de venda de cerveja no morro? Em resumo, pelo fato de a venda de álcool ser permitida, morrem pessoas por usar álcool, mas não morrem pessoas por venderem álcool. O que aconteceria se fosse permitido vender drogas?

Mortes anuais por consumo de drogas no Brasil: menos de 1.000
Mortes anuais por venda ilegal de drogas no Brasil: cerca de 40.000

Qual seria sua prioridade? Toda morte evitável merece atenção do Estado, mas, sendo você o gestor, você investiria mais em medidas para evitar quais tipos de morte, as mortes por drogas, ou a morte por venda ilegal de drogas? Ou seja, você investiria mais dinheiro para evitar 1.000 mortes ou para evitar 40.000 mortes anuais? O mundo inteiro tem investido mais na primeira opção. Alguém explique o porquê...

domingo, 2 de abril de 2017

Empoderamento e cidadania, uma visão brasileira




No último artigo que tive o prazer de compartilhar no blog, abordei uma temática relativa à mudanças microssociais ocorrendo na sociedade brasileira, empiricamente testemunhadas no meu entorno, que, apesar de ainda constituírem movimentos minoritários, encontrando-se, diriam alguns, em estágio embrionário (as famosas sementes), deviam ser apreendidas com otimismo. Haveria, no meu ver, demonstração de capacidade cidadã em criar, adaptar-se e até mesmo transformar velhos padrões ainda dominantes usando referenciais que valorizem atitudes como solidariedade, inclusão e integração em uma expressão mais visível e concreta de amor ao próximo.

Um amigo, ao ler o artigo, comentou sobre a necessidade de empoderamento dos Brasileiros para que tal transição ocorra. O comentário me interpelou e me instigou a primeiramente entender melhor o significado deste neologismo recém difundido. Segundo, interessou-me a aplicabilidade daquele conceito na sociedade Brasileira em busca de transformação mais efetiva e sustentável, mesmo que ainda bastante inconsciente.

A palavra “empoderamento” é descrita em dicionários da língua portuguesa como Aurélio e Houaiss. De acordo com eles, o termo conceitua o ato ou efeito de promover conscientização e tomada de poder de influência de uma pessoa ou grupo social, geralmente para realizar mudanças de ordem social, política, econômica e cultural no contexto que lhe afeta.

A ideia seria portanto dar a alguém ou a um grupo o poder de decisão em vez de tutelá-lo.

O termo “empoderamento” retro definido provém da tradução literal do termo inglês “empowerment”, surgido nos Estados Unidos há uns 30 a 40 anos em contexto acadêmico. Reza a lenda, aceita pela maioria, que o pesquisador em psicologia social, Julian Rapapport, teria cunhado o termo “empowerment” com a intenção de descrever um fenômeno observado e a ser encorajado nas esferas individual e comunitária.

De fato, o neologismo, em sua origem, tenta descrever processos que dizem respeito à individualidade, o “empoderamento pessoal”, uma abordagem oferecida em psicologia que deve permitir a emancipação do indivíduo, ganhando autonomia e liberdade. Profissionais de coaching têm usado com frequência aquele conceito como motor para suas atividades de desenvolvimento pessoal.

Consequência natural desse empoderamento pessoal, surge uma capacidade individual em identificar-se a determinados grupos, gerar sentimentos intra-grupo de respeito recíproco, ao sentir-se pertencente plenamente a uma comunidade, defendendo suas necessidades perante o restante da sociedade. Os movimentos feministas é que melhor representam essa dimensão comunitária do empoderamento. Apesar do feminimo ser o movimento mais comumente associado ao vocábulo “empoderamento” em sua dimensão grupal, este designa a batalha por reconhecimento e inclusão de toda comunidade que, de alguma forma, pode ser considerada minoritária e/ou vítima de diversas injustiças. O interessante é notar que a prática contínua deste sentimento de respeito e defesa de causa tende a desencadear no indivíduo uma capacidade de expressão de solidariedade que transpassa sua própria comunidade, identificando-se de alguma maneira com as dificuldades enfrentadas por outros grupos vulneráveis. Minha colocação sobre iniciativas testemunhadas inserem-se nesse nível de entendimento do fenômeno solidário em processo gradual de empoderamento.

Mas, poderão tais fenômenos provocar mudanças significativas nas estruturas da sociedade na qual se inserem? Ou seja, poderia existir um terceiro nível de “empoderamento” que poderíamos chamar de societal? A pergunta liga portanto o empoderamento à uma prática cidadã esclarecida e responsável.

Pois bem, para minha surpresa, existe uma visão brasileira tradicional sobre o assunto, sugerida pelo educador Paulo Freire. Para ele, o “empowerment”, em sua versão original, enfatizaria a problemática da liberdade individual, pilar fundador da sociedade norte americana. Apesar de reconhecer que tal prática seja um passo necessário à uma prática cidadã mais responsável, ela, em si, não seria suficiente para que o salto entre o nível comunitário e societal ocorra. Para tanto, Paulo Freire reforça a necessidade de conscientização, um processo mais amplo do que o empoderamento. Ou, melhor dizendo, o empoderamento como ferramenta necessária, passo obrigatório rumo à uma conscientização que permita gerar mudança saudável de entendimentos e comportamentos, não somente no contexto individual ou do grupo, mas também à nível societal.

Como encorajar então esse movimento de conscientização coletiva? Até onde pude perceber nas poucas leituras que eu realizei sobre o assunto, as áreas da saúde, entre elas medicina comunitária e saúde coletiva parecem ser vanguardistas no assunto incentivando a implementação de ações diversas, transdisciplinares e transdimensionais, que auxiliem nesse tal salto de conscientização. Não por acaso, o amigo que citei no início do artigo atua em pesquisas na área de saúde coletiva.

A meta é alvejar tanto o nível individual do empoderamento, ou seja, reconhecer a necessidade de transformar-se, integrar novos hábitos em todas as áreas de sua vida que sirvam de “seguros” por assim dizer à sua saúde física, emocional e mental, como o nível do empoderamento comunitário em ações conjuntas destes indivíduos, enfrentando perigos e desafios similares para que, juntos, achem soluções viáveis e sustentáveis, perante por exemplo, problemas ligados à sujeira nos ambientes, cuidados com a água, elaborando e implantando ações reparadoras e educativas. Assim, há, claramente, a necessidade de implantação de políticas públicas que permitam que esses indivíduos e coletividades consigam reconhecer e assumir suas responsabilidades. Cuidado, a meta não é que a política pública se substitua ao esforço local. Ao contrário, trata-se, nas políticas públicas sugeridas, de dar apoio ao processo de responsabilização e conscientização, delegando poderes a estes, em vez de tutelá-los: um voto de confiança em suas capacidades criativas na busca de soluções que façam sentido e gerem, portanto, verdadeira diferença no contexto específico destes indivíduos e comunidades ou grupos.

Baseado nesses exemplos da área de saúde e seguindo o raciocínio proposto na prática cidadã em política, haveria, no meu entender uma necessidade de revisão profunda das práticas políticas tradicionalmente diretivas. Estas deveriam privilegiar uma postura que foque o suporte às iniciativas isoladas, fomentando meios para que estas possam florescer e sustentar-se, respeitando suas especificidades. Ou seja, trata-se de estabelecer políticas que deem mais poder e autonomia às ações locais, micro ações, que deem mais visibilidade e acesso ao cidadão para expressar suas necessidades e expectativas, seja em nome de um grupo ou representando uma demanda difundida na sociedade como um todo.

Aquilo me lembra a prática da democracia participativa, um movimento identificável em vários países e frequentemente viabilizada com uso da ferramenta internet, incluindo, por exemplo, iniciativas para propor projetos em plataformas especiais oferecidas por Governos e, que, a partir de um determinado número de votos recebidos, passam a ser pauta obrigatória para o poder legislativo. As iniciativas de transparência de contas, convite à organizações não governamentais e representantes de coletividades em decisões específicas integram um conjunto de ações que configuram uma nova maneira de se fazer política, de ser cidadão. De novo, estas tendências estão surgindo agora. Sua consolidação depende de mudança nas mentalidades a respeito da política, sujeita a crítica e rejeição, após anos de práticas tendendo à imposição e uniformização. 

O empoderamento como caminho para conscientização e consequente mudança societal é possível, sim. Para concluir, permito-me reproduzir abaixo as palavras de Paulo Freire quando indagado sobre a possibilidade efetiva de mudanças na sociedade:

Se é possível obter água cavando o chão,
se é possível enfeitar a casa,
se é possível crer desta ou daquela forma,
se é possível nos defender do frio ou do calor,
se é possível desviar leitos de rios, fazer barragens,
se é possível mudar o mundo que não fizemos, o da natureza,
por que não mudar o mundo que fazemos, o da cultura, o da história, o da política?